Dentro de Em Ruínas, o mais recente filme distribuído pela Netflix, somos transportados para um cenário de destruição, onde Seul se torna uma terra sem lei após um devastador terremoto. Na trama, um destemido caçador (Ma Dong-seok) decide embarcar em uma missão perigosa para resgatar uma adolescente (Roh Jeong-Eui) sequestrada por um médico insano (Lee Hee-joon). O filme busca destacar os absurdos imagéticos inerentes ao cinema de gênero de ação, aproveitando-se do contexto pós-apocalíptico previamente introduzido em sua obra predecessora, Sobreviventes – Depois do Terremoto. É notável observar que Em Ruínas direciona sua narrativa para um vulgarismo artístico, no qual a brutalidade assume um papel preponderante, contrastando com o foco anterior em retratar o drama da sobrevivência presente em Depois do Terremoto. O filme incorpora elementos característicos do cinema “aventuresco”, como o cientista maluco, o herói salvador que reluta em se perceber como tal, seus leais companheiros e a presença da sobrevivente indefesa. Dessa maneira, Em ruínas surge como uma manifestação do puro cinema vulgar.
O autorismo vulgar, “nascido” no início da década de 2010, propõe uma visão que busca destacar elementos autorais em diretores que trabalham com o gênero de ação, frequentemente alvo de críticas negativas. A proposta é reconhecer a validade artística desses filmes, desafiando a ideia de que a ação frenética e brutal é, por natureza, inferior. Ao contrário, o autorismo vulgar sugere que esses elementos podem ser formas legítimas de expressão cinematográfica, proporcionando uma experiência mais direta e aberta ao público. Historicamente, o termo “vulgar” foi empregado de maneira pejorativa na arte, ecoando distinções entre “alta arte” e “baixa arte”. Filósofos como Aristóteles questionavam essas hierarquias, associando a “alta arte” a temas épicos, como dramas e Deuses, enquanto a “baixa arte” se concentrava em condutas consideradas menos nobres e em classes sociais tidas como mais baixas como a comédia. O autorismo vulgar desafia essa dicotomia, buscando uma apreciação mais inclusiva e diversificada do cinema. Ao destacar traços autorais em diretores de filmes mais mainstream, o movimento propõe uma análise mais profunda e uma valorização dos elementos que muitas vezes são desconsiderados pela crítica. Nesse sentido, o autorismo vulgar não apenas defende a legitimidade do cinema de gênero (ação, terror, melodrama, erotico etc), mas também questiona a própria noção de “alta” e “baixa” arte, promovendo uma visão mais ampla e aberta da expressão cinematográfica.
Esta abordagem procura, em muitos momentos, um cinema mais direto com o espectador, o que de chamar como “cinema como corpo e pele”. O vulgarismo ou o cinema de gênero frequentemente mexe diretamente com o corpo daquele que assiste; o melodrama provoca lágrimas, o terror incita o medo, o erótico estimula o prazer, e a ação desencadeia a adrenalina. Em outras palavras, é o cinema que estabelece um contato imediato com o espectador, sendo a imagem não apenas um meio de entretenimento, mas também capaz de estimular profundamente quem assiste. Nesse contexto, Em Ruínas direciona seus aspectos visuais e cenas de ação, em certa medida, com a intenção de incorporar elementos clássicos do cinema de gênero. É verdade que o novo filme da netflix não é nenhum John Wick ou Operação invasão mas a narrativa de Em ruínas busca engajar o espectador não apenas visualmente, mas também sensorialmente, explorando a capacidade do cinema de evocar sensações. Não à toa, o roteiro no vulgarismo torna-se o exemplo perfeito de que ele não é a parte principal do cinema, afinal, o roteiro é um meio que antecede a prática cinematográfica. Aqui, o olhar do diretor é o único capaz de transportar o espectador; um texto escrito não consegue incorporar a ideia de uma cena tão brutal, por exemplo. A história contada serve apenas como pano de fundo para todo o estímulo, toda a ação, transformando aquela jornada em um meio para que a imagem proporcione ao espectador todas aquelas sensações na pele e no corpo.
Heo Myeong-haeng, diretor de Em Ruínas, compreende profundamente a ideia do vulgarismo cinematográfico. Seu roteiro é marcado pela simplicidade, não necessitando de mais do que um herói e um cientista maluco. Seu virtuosismo com a câmera reflete a natureza do vulgar: estilizada, pirotécnica e, deliberadamente, falsa. Destaca-se a forma como ele espetaculariza todos os elementos, onde os absurdos se apossam da imagem, dando vida a homens imortais, corpos indestrutíveis, feras humanoides e outros elementos extravagantes do cinema fantástico. Ele faz questão de que o espectador observe tudo aquilo e se questione: “Que mentirada toda é essa?”. É evidente que o cinema vulgar não aspira contar histórias realistas (ou pelo menos reais demais), uma experiência já comum em nosso cotidiano. Seu propósito é criar um universo ficcional, onde o espectador reconhece a fantasia como central, compreendendo que o cinema é, essencialmente, a arte da mentira e da ilusão. Funciona como um escapismo diante de nossa própria realidade monótona. Em Ruínas, portanto, assimila e expressa (na medida de seus limites) essa essência: brutal, divertida e, acima de tudo, vulgar.