Em As 4 Filhas de Olfa (Les filles d’Olfa), da cineasta Kaouther Ben Hania, acompanhamos Olfa Hamrouni, uma mulher tunisiana mãe de quatro filhas que, desde a infância, viveu sob privações e dramas, sendo duramente afetada pelo fundamentalismo religioso do seu país. Um dia, suas duas filhas mais velhas desaparecem. Uma jornada íntima de esperança, rebelião, violência, transmissão e irmandade, que questiona os alicerces de nossas sociedades.
Não é fácil analisar jornalisticamente uma produção documental que esbanja detalhes e particularidades de culturas e religiões, mesmo que tenhamos uma base desses determinados assuntos em nossa obrigatória bagagem de conhecimento. Graças a produções como As 4 Filhas de Olfa, somos transportados a um aprofundamento edificante não só do fato que desmanchou para sempre o círculo familiar da personagem título, mas dos intensos conflitos no norte do continente Africano e Oriente Médio. Comprometida em entregar a reconstrução de todo o contexto que levou as filhas mais velhas de Olfa a serem “levadas pelos lobos”, maneira poética encontrada para destacar que as meninas se aliaram a um grupo terrorista jihadista, a diretora Kaouther Ben Hania, adere a um interessante e bem realizado jogo cênico para, ao mesmo tempo, contar e ilustrar a triste história.
Ben Hania, que entrega total responsabilidade na realização de As 4 Filhas de Olfa, tem a ideia ousada de recrutar duas atrizes representantes das ausentes filhas mais velhas Rahma (Nour Karoui) e Ghofrane (Ichrak Matar) que interagem com as caçulas verdadeiras, Eya e Tayssir, nas dramatizações, tendo a sensibilidade de também chamar uma artista, Hend Sabry, para representar Olfa em momentos mais dramáticos, sob a supervisão da própria. Reviver um momento traumático foi um intenso desafio para as verdadeiras pessoas ali presentes na produção, mas há um notável cuidado por parte do roteiro e direção em respeitar limites e pedir permissão para representar determinado fato.
Desde o seu primeiro momento, o representante da Tunísia no Oscar, na categoria de Melhor Documentário em Longa-Metragem, se mostra eficiente tanto na apuração tradicional de registros sobre o determinado fato em questão quanto um criativo exercício de cinema experimental. Por conta da originalidade narrativa em amalgamar vivências e simulações, algumas delas até descontraídas e, na medida do possível, leves, que o “soco no estômago” proveniente dos acontecimentos reais é levemente amortecido e o espaço dado a humanização de Olfa, isto é, longe de mídias conservadoras ou sensacionalistas, é intensificada, mesmo que reflexos de um passado traumático, devido ao fundamentalismo religioso e a opressão feminina, possam involuntariamente influenciar em seus atos. No primeiro ato, a ligação entre as atrizes e as personagens reais de As 4 Filhas de Olfa é estabelecida por longas sequências de socialização sobre costumes e ideologias que fizeram as meninas aderirem o posicionamento político que as levaram para o confinamento.
A partir do segundo ato, por outro lado, a intensidade dos fatos vai sendo revelada em um ritmo aceleradamente doloroso e impactante. Logo, o soco no estômago passa a ser sentido e toda a história do documentário parece encontrar uma explicação devastadora. Não arrisco dizer que existe aqui uma mudança repentina de tom, já que toda a narrativa nos prepara para o desfecho triste e revoltante da história, porém é importante destacar o quanto a produção foi certeira em revelar os fatos tão nua e cruamente.
Munido de um discurso afiado, uma edição que mescla com maestria o jogo de cena, enquadramentos que favorecem os diversos sentimentos de Olfa e suas filhas caçulas e uma tonalidade fria e melancólica escolhida pela direção de fotografia, As 4 Filhas de Olfa é, de fato, um filme que têm muito a dizer e o faz com delicadeza, respeito e sem ter medo de apresentar suas verdades.
Premiado no Festival de Cannes em 2023, o filme de Kaouther Ben Hania é um forte cotado levar o Oscar de Melhor Documentário para casa.