Desde a estreia, Love, Death + Robots fez nome como aquela série que coloca a animação a serviço de algo maior. Cada episódio é uma centelha nova: ora uma ideia provocadora, ora um tapa visual, ora uma metáfora que você só entende dias depois. Não é só sobre robôs ou sangue jorrando com estilo, é sobre brincar com o formato, questionar o humano, puxar o tapete da nossa zona de conforto.
No Volume 4, a premissa ainda está ali, acenando de longe. Mas dá pra sentir que algo mudou. Os episódios continuam visualmente ambiciosos, alguns até espetaculares, mas é como se a inquietação narrativa tivesse sido trocada por um impulso estético. E tudo bem. Só que talvez, nesse câmbio, parte da essência tenha escorregado pelos cantos.

Episódio 1 — Can’t Stop
Começa parecendo um videoclipe do Red Hot Chili Peppers com esteroides. Aliás, é quase isso mesmo. A referência ao show em Slane Castle, 2003, é explícita. A energia é pulsante, as cordas que suspendem os músicos criam um balé mecânico que parece só estiloso… até que você percebe o incômodo. Aquilo ali são marionetes. Robôs? Ou humanos performando sem parar, exaustos, presos a um sistema que exige espetáculo constante?
É quando a crítica aparece: arte como distração, como combustível para manter outras engrenagens rodando. E nesse mundo hiperdigitalizado, o que mais falta talvez seja justamente o amor. A ausência que liga o robô à morte. E ao que nos resta de humano.
Episódio 2 — Minicontatos Imediatos
Uma invasão alienígena fofinha, com sátira no volume máximo. Tem mini-humanos, caos e uma crítica que acerta na mosca: a gente só se une quando o apocalipse já chegou. O individualismo, a desinformação e a desconfiança mútua nos colocam à beira da própria ruína. E a piada final, um peido cósmico, tenta ser irreverente… mas escorrega.
É como se quisesse ser Deadpool e Black Mirror ao mesmo tempo. O problema é que o timing das piadas quebra a força da crítica. Dirigido por Tim Miller, o episódio tem potencial, mas parece mais preocupado em ser engraçadinho do que incômodo. Uma pena.
Episódio 3 — Spider Rose
Aqui sim a série se reencontra. Spider Rose é cyberpunk, é sensível, é profundo sem gritar. Lydia vive isolada numa estação espacial que é metade casulo, metade prisão emocional. O luto é o motor do episódio, e a tecnologia que a mantém viva também é o que a impede de seguir.
Quando um bichinho (meio Stitch, meio milagre) entra em cena, tudo muda. Ele não só quebra o ciclo, ele devolve a Lydia algo essencial: afeto. Com a única parte de pele que ainda tem, ela acaricia o ser. É ali que o episódio pulsa. É ali que a série brilha.
A crítica é direta: viramos máquinas de sobrevivência. E quando algo nos toca de verdade, aquilo reacende o que achávamos perdido. A reconexão é o verdadeiro plot twist. E Spider Rose é, de longe, um dos melhores da temporada. Porque tem coração. E nunca esquece que robôs, sem isso, são só lataria.
Episódio 4 – Os Caras do 400
Tem visual potente, roteiro afiado e metáfora das boas. O mundo acabou, e quem sobrou foram os marginalizados. Negros, latinos, asiáticos, aqueles que o sistema sempre deixou de lado. E é deles a tarefa de reconstruir. Porque quando os privilegiados destroem tudo, adivinha quem fica pra limpar a bagunça?
A crítica é afiada e genial: bebês gigantes mimados, símbolos de uma elite infantilizada e destrutiva, são o “inimigo”. E o que parece piada vira denúncia. O protagonista diz que “nada nunca tem fim”. Não é esperança, é sobrevivência. O episódio é manifesto. É grito. E é dos que mais ficam ecoando depois dos créditos.
Episódio 5 – A Outra Coisa Grande
Mais um capítulo da saga “os gatos vão dominar o mundo”. Aqui, o protagonista é um felino com vocabulário de Conde Drácula e sarcasmo afiado. Ele observa o mundo, julga todo mundo, e se alia às máquinas. A sátira é boa, o visual é esperto, e o contraste entre o que ele pensa e o que os humanos veem é hilário.
Mas a piada já foi feita antes. E apesar de tudo funcionar, falta peso. A crítica está lá: a gente trata objetos como gente, e pessoas como coisas. Mas o episódio termina de forma abrupta. Um bom passatempo, mas só isso.
Episódio 6 – Gólgota
Título forte, referência direta à crucificação de Jesus. E sim, é sobre fé. Mas com alienígenas. E golfinhos alienígenas. Como messias. Genial.
O episódio mergulha na espiritualidade de um jeito nada convencional. O sagrado aparece, mas não do jeito que a gente espera. E, claro, os humanos reagem com negação. Cartazes dizem “Deus não é peixe”. A ironia é mordaz: o divino só é aceito se tiver a nossa cara. E quando não tem, vira heresia.
Ao mesmo tempo, o episódio se vale de um sarcasmo afiado, quase no espírito de O Guia do Mochileiro das Galáxias. Como quando o padre solta um “Jesus!” ao ver a golfinha messiânica. Ele não está louvando — só usando uma expressão automática. E é aí que o roteiro acerta em cheio: ao mostrar como banalizamos o sagrado sem perceber.
A presença de atores reais dá peso. A crítica é religiosa, política e social. Um padre humano tentando lidar com uma fé que não é a sua mostra o quanto moldamos o divino à nossa imagem. Se sai disso, a gente surta.
Corajoso, desconfortável e cheio de camadas. Provavelmente o segundo melhor da temporada.
Episódio 7 – O Grito do Tiranossauro
Uma arena alienígena, gladiadores em dinossauros e uma aristocracia que bebe sangue enquanto o povo sangra. Um espelho do presente, disfarçado de passado futurista.
A nudez dos personagens é quase simbólica: sem máscaras, sem armaduras, só carne e resistência. Quando o tiranossauro branco se recusa a matar, a história muda. É sobre a conexão entre os oprimidos. É sobre quebrar papeis impostos. A caça que se recusa a ser caçador. E a esperança que nasce da cumplicidade.
Episódio 8 – Como Zeke Entendeu a Religião
Segunda Guerra, nazistas ocultistas e um protagonista cético. Parece filme B, mas vira uma reflexão sobre fé. A estética 2D, vintage e sufocante, ajuda a construir a tensão.
Quando Zeke destrói uma cruz e isso acaba com a criatura, a metáfora se forma: às vezes, a fé nasce do caos. Do absurdo. Do improvável. E o episódio transforma ação frenética em epifania silenciosa. Uma surpresa boa. Daquelas que fazem pensar depois.
Episódio 9 – Dispositivos Inteligentes, Donos Idiotas
Piada direta: os gadgets ficaram inteligentes, nós é que estamos lerdos. A crítica vai escalando até chegar na privada em crise existencial. Sim, você leu certo.
Tem humor, tem crítica, tem timing. Mas também tem aquele gosto de sketch de internet. Rende boas risadas e comentários sarcásticos sobre a era digital, mas não passa muito disso. E tá tudo bem.
Episódio 10 – Pois Ele Se Move Sorrateiramente
Pra fechar, poesia sombria em 2D gótico. Um poeta num hospício, escrevendo com sangue, é visitado pelo diabo, que, no fundo, é só um produtor querendo moldar a arte.
A metáfora é clara e dolorida: criar é vender a alma. Mas o episódio vira quando uma sociedade de gatos salva o poeta. Felinos como guardiões da essência. Uma fábula visual, melancólica e linda. E que termina do jeito certo: deixando cicatriz.
Conclusão
Talvez Love, Death + Robots esteja, sim, esgotando ideias. Ou talvez esteja tentando se reinventar sem saber direito para onde ir. O Volume 4 ainda tem brilho, ainda provoca, mas também vacila.
Falta unidade. Falta aquele soco no estômago que nos lembra por que essa série é diferente. Mas talvez esse cansaço seja o próprio recado: estamos buscando salvação na tecnologia, quando, na real, o que falta é conexão. Com o outro. Com o bicho. Com nós mesmo.
Porque no fim, o que move tudo ainda é aquilo: amor, morte e robôs. Nessa ordem.