O pensamento humano parece carregar uma necessidade quase inescapável de categorizar tudo sob os polos do bem e do mal, como se a existência pudesse ser reduzida a um jogo dicotômico, como se fosse tudo preto no branco. No entanto, o próprio ato de existir — de pensar, agir, pertencer, de ser no mundo, Dasein é complexo. Não há um roteiro predefinido a ser vívido, não assumimos exclusivamente o papel do herói — imaculado, benevolente, justo, protetor — tampouco nos encaixamos apenas na figura do vilão — cruel, depravado, malévolo, hipócrita. A realidade é que somos uma soma de todas essas partes. Já fomos heróis na história de alguém, assim como certamente habitamos o papel de vilões na narrativa de outrens. Há dias em que agimos com justiça, e outros em que sucumbimos à inveja. Somos humanos, falhos, movidos por impulsos, e muitas vezes guiados pelo instinto de sobrevivência.
É a partir da própria complexidade da condição humana que esta cinebiografia de guerra dirige seu olhar a Stella — personagem que não se enquadra nas categorias estanques de heroína ou vilã. Ela é, antes de tudo, uma mulher atravessada pelas contradições do tempo: vítima e algoz, sobrevivente da sua própria história. Stella: Vítima e Culpada narra a trajetória de Stella Goldschlag (Paula Beer), uma jovem judia que vive na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, ao lado de sua família.
Mesmo sob o peso da repressão crescente imposta pelo regime nazista, Stella alimentou o sonho de se tornar uma grande cantora de jazz — uma ambição que destruiu o mundo em ruínas ao seu redor. Esse sonho, contudo, é abruptamente silenciado quando ela e seus pais são convocados a se esconder para escapar da perseguição antissemita. Após serem capturados pela Gestapo, a vida de Stella sofre uma ruptura irreversível. Diante do terror sistemático da polícia secreta nazista, ela recebe uma proposta brutal: uma chance de sobreviver, desde que esteja disposta a traçar seus traços, rompendo com sua identidade e convicções mais íntimas.
Tal como muitas obras ambientadas na Segunda Guerra Mundial — um dos períodos mais explorados pelo cinema — Stella: Vítima e Culpada opta por uma estrutura formal intimista, que não apenas confronta Stella diante da brutalidade de seu tempo, mas também interpela o espectador em seu próprio senso de moralidade. Ao longo da narrativa, sabemos — ou ao menos considerarmos saber — que as escolhas de Stella são eticamente condenáveis. E ainda assim, o filme nos força a encarar uma pergunta incômoda: em seu lugar, agiríamos de maneira diferente? Gosto de pensar que sim, que manteria minha integridade. Mas essa certeza relativa ao conforto da distância histórica — e da segurança. Jamais vivi, e provavelmente nunca viverei, o que ela experimentou. E é nesse abismo entre julgamento e experiência que o filme finca sua força. Stella: Vítima e Culpada vai muito além do cinema de denúncia. É uma obra que se move no território do desconforto, da ética e da urgência moral. Não se trata apenas de expor as atrocidades de um tempo, mas de tensionar a consciência do espectador até onde ela consegue suportar.
Sim, eu a culpo. Mas também a compreendo. Eu a condeno — e, paradoxalmente, queria poder tê-la protegido. Kilian nos provoca não apenas enquanto espectadores, mas enquanto seres humanos convocados a refletir sobre a fragilidade das nossas certezas. O incômodo não está apenas nas imagens — duras, explícitas, muitas vezes sufocantes —, mas na forma como essas imagens nos posicionam inconscientemente ao lado da personagem. É impossível não pensar: e se fosse eu?
É instigante observar como a direção de Kilian Riedhof opera a partir de um olhar duplo, ambíguo, que humaniza sem absolver. Há uma dimensão profundamente provocante em seu enquadramento: em certos momentos, a câmera parece se aproximar de Stella com piedade, com a ternura de alguém que deseja salvá-la, mas se vê impotente diante de um mundo irredimível. Em outros, esse mesmo olhar se torna severo, quase impassível, como se estivesse em julgamento — perplexo diante de suas escolhas.
Essa ambiguidade é o que torna Stella uma figura tão inquietante: Riedhof a filma ora como vítima do nazismo, uma mulher judia esmagada por um regime monstruoso, ora como agente ambígua de um mal que, em certas cenas, parece até lhe causar prazer. Há, portanto, uma tensão constante entre a passividade imposta e a perversidade possível — e é nesse intervalo que o filme nos obriga a encarar a complexidade de quem somos quando colocados sob circunstâncias extremas.
Há quem observe essa dualidade formal e a interprete como uma confusão estética — e, de fato, a oscilação entre registros pode soar dissonante à primeira vista. No entanto, para mim, ela funciona como parte orgânica da mise-en-scène, justamente por refletir a complexidade da experiência representada. Que fique claro: não se trata de suavizar os horrores do nazismo — se há algo na história da humanidade que deve ser reconhecido como expressão do mal em sua forma mais pura, é o nazifascismo. O que está em jogo aqui é a existência de Stella, uma vida que buscava, à sua maneira, sobreviver.
Riedhof tenta, em muitos momentos, construir uma atmosfera formal de verossimilhança quase documental, uma imersão que, ironicamente, resulta em certa afetação estética, por vezes vazia. Curiosamente, essa sensação de presença — de proximidade ética e filosófica com os eventos — se manifesta com mais potência justamente quando ele assume frontalmente o olhar dicotômico, quase fenomenológico, do que quando recorre a uma câmera que apenas espreita, como se registrasse à distância. Portanto, é nesse embate entre o humano e o imperdoável, entre o impulso de julgar e a necessidade de compreender, que o filme provoca e relata a figura de uma mulher má e boa, justa e injusta, vítima e culpada.