dom, 14 setembro 2025

Crítica | O Agente Secreto

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Sexto longa-metragem da sua filmografia, Kleber Mendonça Filho retorna para a sua cidade natal para um projeto pensado há anos. “Todo mundo me pergunta porque faço filmes em Recife. Bem, é porque eu moro aqui”, disse o diretor na pré-estreia do filme no Teatro do Parque, um dos símbolos do cinema recifense. Além da expectativa natural por mais um filme do diretor, o público está na empolgação esperando por esse projeto após a repercussão no maior festival cinematográfico do mundo, quando ‘O Agente Secreto’ venceu dois prêmios no Festival de Cannes em maio deste ano. Além disso, o filme tem como protagonista Wagner Moura, um dos atores brasileiros de maior repercussão atualmente, vencedor do prêmio de Melhor Ator em Cannes pelo filme. O filme, no momento da escrita dessa crítica, está entre os 6 filmes que disputam a chance de representar o Brasil na categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar 2026.

Marcelo (interpretado por Wagner Moura), um professor de tecnologia com um passado misterioso, sai de São Paulo em 1977 e vai para o Recife com a esperança de recomeçar sua vida, mas logo descobre que o refúgio que buscava está longe de trazer paz

Acho que, antes de tudo, como já é conhecido na filmografia do Kleber Mendonça Filho, ‘O Agente Secreto’ é mais uma carta de amor ao Recife em forma de arte cinematográfica. É um cinema feito em memória da capital pernambucana, mas não apenas no ato de filmar as ruas ou cartões-postais da cidade, é como se o Recife tomasse conta das histórias que Kleber conta, com uma interpretação poética sobre o ambiente que toca profundamente todas as pessoas locais que o assistem. Os enquadramentos usados para destacar barraquinhas de comida tradicionais da cidade, cenários feitos com detalhes de casas recifenses, trilha sonora com letras sobre a capital, figurinos que, mesmo a história se passando nos anos 70, você encontraria alguém até hoje com essas vestimentas. Como alguém que cresceu em Recife, você se sente representado em tela, quase como se estivesse segurando a câmera para gravar cada cena. 

Porém, mais importante que isso, toda essa construção do cenário é importante para o uso na narrativa. Se a memória é um ponto forte na obra, Recife é a cidade das histórias. A história de uma vida melhor; de um refúgio Armando, ou melhor, Marcelo precisava; da vida de cada personagem; de vidas que passam pelos nossos olhos. Ao mesmo tempo que, vivendo nessa busca por uma história melhor, a realidade não parece nada agradável com seus habitantes. Se, por um lado, Armando vive mais “fechado”, com expressões mais contidas e mais desconfiado das situações, os seus pesadelos perturbam a noite como uma explosão de situações que o afetam. Um simples casal angolano da vizinhança, na verdade, vive preso na necessidade de mudança. Da mesma forma que, o que é apenas uma visita técnica de um membro superior da empresa, na verdade acaba sendo a confrontação que iniciou uma perseguição de vida ou morte contra o protagonista.

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Créditos: Vitrine Filmes/CinemaScópio Produções

 A obra não pede por pressa em sua decupagem, pelo contrário, faz questão de explorar todos os nós e contra-nós de cada pedaço de chão dessa cidade de histórias, desde um homem que foi morto em um posto, passando por uma perna arrancada por um tubarão e por uma morte do filho de uma empregada, até, finalmente, nos levar para a história verdadeira daqueles refugiados e do desfecho da vida do nosso personagem principal. Do mesmo jeito, não há nenhum aprisionamento dentro da obra, nem em quesitos estéticos ou sobre sua história. Estamos na década de 70 mas com assuntos atuais, debatendo temas relevantes sobre a memória daquele tempo, discussões de gênero e outros assuntos que são demonstrados em tela, alguns até de forma simples, mas deixando claro ao espectador como aquela história também tem sua realidade. Entre realidade e perigos, Marcelo tem pesadelos no prédio de Dona Sebastiana, vai trabalhar em um novo emprego, sai no meio da folia para aproveitar o carnaval, mas com todos os perigos de Armando pesando nas suas costas e na sua consciência. Realmente aquele lugar seria o seu recomeço? Ou tudo não passou apenas de um desejo? Marcelo finalmente alcançou a liberdade que queria?

O viúvo, Marcelo, tem memória da sua amada, o filho tem memória da mãe, o avô tem memória do neto, mas e quem tem memória de Marcelo? Uma mulher que sonhava em ser respeitada, um garoto que sonha com tubarões, um senhor que sonha em ter seu filho e neto juntos em paz e um “refugiado” que sonhava em encontrar os registros da sua mãe. Os elementos lúdicos do filme deixam toda a aura maior, com um ar que auxilia todo esse mistério e essa construção mais lenta. Existe um trabalho minucioso de toda a mise-en-scene, principalmente da direção de arte com seus cenários, maquiagem e figurinos, da direção de fotografia e da trilha sonora, em manter um tom quase que espiritual nas passagens, como se tudo fosse colorido e brilhante nessas passagens que o diretor quer impor uma mensagem, como na cena de abertura no posto de gasolina, e um tom mais sério e robusto em momentos que a realidade bate mais forte, como nos planos durante a entrevista de Marcelo e a cena do jantar. 

No mesmo sentido, o desenvolvimento dos personagens acaba passando por um processo similar. Gosto de pensar bastante em duas figuras do filme: o filho de Marcelo e Dona Sebastiana, interpretada por Tânia Maria. Esta é responsável pelos momentos mais leves do filme, mesmo que o ambiente, o prédio onde os refugiados se abrigam, exista por um contexto sombrio. O seu monólogo é um ponto crucial para falar sobre como aquelas pessoas e suas vidas agora já se encontram em um lugar diferente, com cada ser ali tentando encontrar um sonho, uma memória, um desejo para se agarrar. Por outro lado, seja desde pequeno ou nas cenas como adulto no último ato, o filho acaba sendo uma representação digna dessa transição entre esses desejos e a realidade que eles se encontravam. Como diz o personagem no final, “quando mais novo, eu era louco para assistir o filme ‘Tubarão’, tinha sonhos e pesadelos com tubarões sempre (…), depois que assisti o filme, nunca mais sonhei com aquilo.” Da mesma forma que, pouco antes, ele relata não ter nenhuma lembrança do seu pai Marcelo, como se seus sonhos, realmente, tivessem se encontrado com a vida real e entendido que aquela realidade era dura. Diante disso, afinal, o seu pesadelo ofuscou sua memória? 

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‘O Agente Secreto’ reúne o que há de melhor no cinema de Kleber Mendonça Filho: uma obra que não tem pressa para desenvolver seus mistérios, que nos envolve na psique do protagonista e na atmosfera daquele mundo entre realidade e perigo, enquanto se revela uma verdadeira carta de amor ao Recife e ao cinema brasileiro, reafirmando para o mundo a qualidade, a profundidade e o respeito que nossa cinematografia sempre teve e merece.

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Destaque

Sexto longa-metragem da sua filmografia, Kleber Mendonça Filho retorna para a sua cidade natal para um projeto pensado há anos. “Todo mundo me pergunta porque faço filmes em Recife. Bem, é porque eu moro aqui”, disse o diretor na pré-estreia do filme no Teatro...Crítica | O Agente Secreto