Os Donos do Jogo, nova aposta nacional da Netflix, estreou em 2025 abraçando um subgênero que o brasileiro conhece bem: o crime organizado que opera às claras, atravessando política, carnaval e cotidiano. Heitor Dhalia transforma o jogo do bicho em espetáculo dramático, quase mítico, e articula essa máquina ilegal como metáfora de um Brasil que institucionalizou suas próprias contravenções.
A série acompanha Profeta, vivido por um André Lamoglia surpreendentemente afiado, enquanto ele escala o submundo carioca com a mesma mistura de ambição e tragédia que a gente costuma ver em anti-heróis internacionais. É quase um Game of Thrones tropical, onde famílias, territórios e alianças definem quem sobrevive e quem cai da pirâmide. Cada episódio funciona como um degrau rumo a um colapso ético que não tem volta.

O mais interessante é perceber como Dhalia conversa com o contemporâneo. As apostas online, o tigrinho, as bets que dominam a tela do celular: tudo isso aparece como nova atualização de um mecanismo muito mais antigo. A lógica é a mesma; o verniz muda. O jogo do bicho está vivo, mas agora opera sob a estética dos aplicativos que invadem a vida real com uma facilidade quase assustadora.
Há um comentário muito claro sobre o Rio de Janeiro como personagem. Um lugar distópico, porém reconhecível, onde crime e poder caminham tão juntos que a fronteira entre legalidade e ilegalidade é apenas um detalhe burocrático. Dhalia filma essa cidade como um organismo pulsando, onde cada família tenta dominar o coração financeiro do esquema.
Esse universo ganha força quando olhamos para as mulheres da série. Mirna, de Mel Maia, e Susana, vivida por Giullia Buscacio, são forças silenciosas que operam longe dos holofotes masculinos. Enquanto eles resolvem conflitos à base de violência, elas pensam estratégia, conduzem decisões e manipulam o jogo a partir dos bastidores. É quase irônico que, em um cenário dominado por testosterona, sejam elas as únicas que compreendem verdadeiramente as engrenagens do poder.
No campo das atuações, Lamoglia dá conta das complexidades de Profeta, mas é Mel Maia quem rouba a cena quando o roteiro permite. O elenco funciona bem, mas há personagens que soam repetidos, como se fossem versões recicladas de outros dramas criminais que já vimos. A série aposta nas tensões familiares, traições e quedas anunciadas, mas nem sempre entrega novidade. Algumas viradas funcionam; outras apenas reforçam a sensação de déjà vu.

O texto acerta ao mostrar como o crime virou um modo de sobrevivência, um reflexo social que já apareceu no cinema nacional em obras como Os Enforcados. E também dialoga com o interesse internacional por narrativas de vício e autodestruição, como Balada de um Jogador, de Edward Berger. É um mosaico global onde o Brasil encontra seu próprio sotaque.
Mesmo assim, há momentos em que Os Donos do Jogo parece recheado demais. Violência que nem sempre empurra a trama para frente, subtramas românticas previsíveis e episódios que aceleram quando deveriam respirar. Mas quando a série acerta, acerta bonito: cenas de tensão bem dirigidas, fotografia quente e saturada, ritmo de caos organizado e uma crítica social que nunca grita, mas está sempre ali.
No final, dá para dizer que a série funciona como uma porta de entrada para quem ama melodramas criminais cheios de jogo duplo, vingança e ambições desmedidas. Não é uma reinvenção do gênero, mas é uma obra provocante o suficiente para gerar discussões. Especialmente quando nos lembra que, no Brasil, o crime raramente opera nas sombras. Ele opera na luz do dia, com naturalidade assustadora.
E talvez seja isso que mais incomoda — e mais prende.


