Pluribus parece, à primeira vista, um descanso merecido para Vince Gilligan. Um apocalipse diferente, quase gentil: um vírus alienígena que não destrói cidades nem reduz o mundo a escombros fumegantes, mas apaga sentimentos ruins. Ele se espalha rápido, conecta todo mundo, dissolve conflitos, suaviza arestas. O planeta finalmente aprende a se entender. Todo mundo fica feliz, calmo, unido. Um mundo sem guerra, sem ruído, sem atrito — a utopia que tantas vezes foi prometida e nunca entregue. Só que Gilligan sabe exatamente onde isso começa a dar errado. E é aí que o terror se instala.
Carol (Rhea Seehorn) é a falha no sistema. A exceção que denuncia a regra. A única pessoa imune nos Estados Unidos. Escritora de fantasia romântica, rica, famosa, cercada de leitores apaixonados — e profundamente infeliz. Num mundo que finalmente “deu certo”, ela não é celebrada como resistência, mas tratada como problema a ser resolvido. Não por violência explícita ou coerção direta, mas por cuidado excessivo, atenção invasiva, uma gentileza tão persistente que deixa de soar como empatia e passa a funcionar como ameaça. A mente coletiva não quer destruí-la; quer assimilá-la.

E é aí que Pluribus revela sua inteligência mais cruel. A série entende algo profundamente desconfortável: nem toda utopia é acolhedora. Às vezes, ela só é opressiva de um jeito mais educado, mais sorridente, mais difícil de contestar. A mente coletiva — uma consciência planetária unificada, fruto de um parasita viral que transforma a humanidade em uma única entidade — não se vê como vilã. Pelo contrário. Ela se apresenta como solução definitiva. Quer ouvir, quer cuidar, quer ajudar. O problema é que, quando não existe mais escolha, ajuda deixa de ser gesto e vira imposição.
Gilligan constrói Pluribus como um apocalipse sem monstros visíveis. Não há zumbis correndo pelas ruas, nem alienígenas gritando ordens. O horror vem do consenso absoluto. Da impossibilidade de discordar. Da ideia de que, se todo mundo pensa igual, quem sofre passa a ser um erro estatístico, um ruído emocional a ser eliminado. A felicidade deixa de ser um estado desejável e passa a ser uma obrigação moral.
Carol resiste, e essa resistência cobra um preço absurdo. Quando ela grita, o mundo entra em colapso. Milhões morrem. Não porque ela seja cruel ou inconsequente, mas porque a dor individual se torna insuportável para uma mente coletiva que só sabe processar felicidade. É uma metáfora brutal e extremamente eficaz sobre como sociedades que se acreditam harmoniosas lidam com quem não consegue se adaptar, com quem não performa bem-estar, com quem insiste em sentir demais quando tudo exige calma, gratidão e equilíbrio.
O que Pluribus faz de mais interessante é deslocar a pergunta central. Não se trata de descobrir como derrotar essa mente coletiva, mas de questionar se ela realmente precisa ser derrotada. Se não há guerra, se não há fome, se não há conflito, o que exatamente está errado? Em que momento a paz começa a parecer uma forma de violência? E quem tem o direito de dizer que o sofrimento de um indivíduo vale menos do que a estabilidade do todo?
Carol não é uma heroína confortável. Ela não é conciliadora, nem inspiradora, nem fácil de gostar. É áspera, reativa, frequentemente desagradável. Sua dor não é elegante, nem politicamente correta. E talvez seja justamente por isso que ela incomoda tanto. Num mundo que exige felicidade constante, sentir tristeza vira um ato de desobediência. Num sistema que só reconhece o coletivo, insistir no “eu” passa a ser visto como egoísmo.

Há também uma camada especialmente afiada no retrato da meia-idade feminina. Carol é constantemente orientada a se acalmar, a reformular sentimentos, a confiar que “todos querem ajudar”. Ela fala e não é ouvida. Quando se exalta, vira o problema. O sistema não tenta silenciá-la à força — ele tenta educá-la emocionalmente até que ela se ajuste. A alegoria com relações abusivas nunca é sublinhada, nunca vira discurso. Ela se infiltra nos detalhes, nos gestos, na linguagem do cuidado que sufoca. E é justamente por não ser explicada que dói mais.
Nem tudo funciona com a mesma precisão. O ritmo é deliberadamente lento e, em alguns momentos, flerta com a estagnação. Seehorn, brilhante como sempre, passa episódios girando em falso, esperando que o roteiro permita que Carol avance. Ainda assim, a pergunta central sustenta a série mesmo quando a narrativa hesita. É ela que mantém tudo em tensão.
E se o mundo em paz não fosse exatamente bom?
E se abrir mão de si fosse o preço?
E se a felicidade obrigatória fosse apenas outra forma de controle?
Pluribus não oferece respostas fáceis — nem parece interessada nelas. Prefere o desconforto, a ambiguidade, a fricção. Prefere perguntar “por quê?” quando todo o resto já aceitou seguir em frente. Não é uma série calorosa, nem escapista. Mas é incômoda do jeito certo. E, em 2025, isso por si só já é um gesto radical.


