A categoria de melhor filme estrangeiro no Oscar – e no circuito de premiações da indústria do cinema estadunidense como um todo – talvez seja aquela que se apresenta de modo mais peculiar. Há uma forte tendência por parte dos votantes a enxergar os filmes que nela figuram não exatamente como obras com méritos artísticos próprios, mas antes como “retratos do mundo exterior” a serem submetidos ao olhar do “centro”.
Existem exceções, por óbvio, mas não é a toa que, via de regra, são selecionados para disputar a categoria filmes com um alto caráter de “outro”, marcados seja por uma abordagem que soe domesticadamente exotizada, seja por uma cosmetização da miséria para torná-la mais palatável à sensibilidade dos que acompanham a premiação, seja pela exploração de episódios históricos específicos que identifiquem facilmente a obra como pertencente à realidade daquele “país estrangeiro”, e não do “mundo”, pois o mundo, como se sabe, tem que sempre corresponder ao centro.
Dentro desse contexto, não é difícil compreender o que levou Noite de Reis, enviado como representante da Costa do Marfim, a figurar na lista dos pré-indicados à premiação referida em 2021.
O filme de Philippe Lacôte, cuja ação se passa toda em um só dia, conta a história de um jovem recém-ingresso na prisão de Maca, instituição de proporções gigantes e com uma lógica de poder interno ligada a tradições de longa data. O protagonista é apontado pelo líder dos internos como novo Roman, uma espécie de orador, e lhe é dada a missão de virar a noite da “Lua de Sangue” contando histórias para entreter todos os presos. Paralelamente a isso, o líder dos internos, com problemas de saúde, reluta em seguir o ritual de suicídio e tem seu poder questionado por uma outra facção. Parece confuso e de fato é.
Após o início que flerta abertamente com uma tradição de exploração do flagelo social sob um enfoque de realismo plastificado, cosmetizado – há referências expressas a Cidade de Deus, por exemplo –, o filme, que a uma primeira vista parece bastante previsível em suas intenções, vai se tornando mais maleável e, mais importante, dono de suas próprias narrativas.
Mais do que qualquer coisa, é digna de atenção a maneira como o olhar de Lacôte desestabiliza o tempo por meio da força das tradições históricas presentes no filme. O recurso à narrativa oral na diegese e representada graficamente na tela, reforçado pelas opções estéticas quase litúrgicas do diretor, dota Noite de Reis de um palpável sentido de ancestralidade. É como se o presente retratado no filme fosse deslocado de um pedestal de realismo unívoco para dialogar e ser remodelado em suas significações por outros tempos, outras histórias, bem como pela realidade política do mundo exterior à prisão.
Nesse constante diálogo entre as instâncias da narrativa e o real, inclusive com uso direto do documental, o filme de Lacôte consegue, mesmo que muitas vezes de maneira atropelada, fazer as histórias, presentes e memoradas, caminharem com um sentido de unidade e fatalismo. O destino de uma parece ser o destino de todas elas, e a violência, tanto autodestrutiva como de agressão externa, é a chave que as une. Ainda assim, são histórias contadas e, como tal, permanecem vivas.
A força da obra vem justamente dessa postura de apropriação da história que se reflete tanto sob a ótica dos personagens como sob o olhar do cineasta. É o que a tira de um lugar de produto feito para a apreciação do “estrangeiro”, por assim dizer, e o investe de organicidade e força própria. Talvez por isso seja tão caro à obra de Lacôte o conselho dado por um personagem secundário ao protagonista em certo momento: “Para continuar vivo, você não pode parar de contar sua história.”.