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Início Artigo A arte muda vidas?

    A arte muda vidas?

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    O título deste texto pode dar a impressão de que estou prestes a apresentar uma resposta definitiva sobre a capacidade da arte de transformar vidas. No entanto, a verdade é que não posso oferecer uma resposta conclusiva a essa indagação. O título, na realidade, foi concebido com astúcia para atrair a atenção, pois, no cerne da questão, a arte teve um impacto significativo na minha própria vida. Este relato, possivelmente, ressoará de maneira semelhante à sua experiência, e, assim, por meio de um ato de identificação, podemos, ao final, refletir: será que a arte possui o poder de efetuar mudanças nas vidas das pessoas? A experiência pessoal com a arte muitas vezes transcende a nossa própria ideia de mundo. Em meu caso, o cinema, que não apenas coloriu meu mundo, mas também agiu como um catalisador para transformações profundas. Ao mergulhar nas obras cinematográficas, encontrei uma fonte inesgotável de inspiração e uma maneira de entender e expressar emoções que antes permaneciam latentes. O cinema tornou-se veículo para explorar as complexidades da existência humana e para transcender as limitações do meu cotidiano.

    Ao considerarmos o poder transformador do cinema (e da arte), é vital reconhecer que as influências podem variar grandemente entre indivíduos. O que ecoa profundamente em uma pessoa pode ter um impacto menos significativo em outra. No entanto, é na diversidade de experiências e interpretações que encontramos a verdadeira magia da arte. Ela oferece um terreno fértil para a conexão humana, proporcionando um espaço onde diferentes perspectivas podem convergir e se entrelaçar. A capacidade da arte de moldar nossas percepções e despertar emoções intensas pode ser percebida de diversas formas. Seja por meio da contemplação dos planos no cinema, da imersão em uma composição musical ou da absorção de narrativas literárias, a arte oferece um convite para a reflexão, introspecção e de nos colocar no lugar do outro. Nesse processo, somos desafiados a questionar, a compreender e, acima de tudo, a sentir. É verdade que a arte tem técnica, mas ela não é isolada, é por meio do uso dessa técnica que somos capazes de sentir. Ou você acha que aqueles planos longos de Jeanne Dielman (Chantal Akerman, 1975), ou a intensidade sonora de Verano (Antonio Vivaldi, 1723), não são meios de nos fazer experimentar? O curioso de tudo isso é que a magnitude dessa transformação é inerentemente subjetiva e objetiva, dependendo das experiências únicas de cada indivíduo e da própria técnica. No entanto, ao compartilharmos nossas histórias e ao nos conectarmos através da arte, construímos uma rede intrincada de experiências que ressoam coletivamente. Assim, ao final, a arte incentiva o próprio ser humano a construir a empatia, explorando o poder e a influência duradoura da arte em nossas vidas.

    Refletir sobre este tema traz à tona minhas próprias experiências, e, se permitirem, gostaria de compartilhar um pouco sobre mim. Desde sempre, fui um rapaz extremamente sentimental. Meus pais costumavam brincar, dizendo que eu chorava tanto que não teria lágrimas suficientes até atingir a idade adulta. Ser uma pessoa emotiva é uma parte própria da minha personalidade, mas, de alguma forma, o mundo parecia não estar totalmente preparado para lidar com indivíduos assim, especialmente homens. Expressar emoções, seja chorar, rir alto ou dançar eram comportamentos que muitas pessoas desaprovavam em mim; elas não aceitavam que eu fosse simplesmente eu mesmo. Fui rotulado com vários termos que tentavam diminuir minha própria masculinidade. Para me ajustar às expectativas, acabei sendo compelido a me fechar, silenciando minha verdadeira essência e aprendendo a reprimir quem eu era. Passei anos da adolescência sofrendo em silêncio, tentando conformar-me a padrões que, no fundo, não me representavam.

    Esse processo de repressão, no entanto, teve suas consequências. À medida que me fechava para o mundo, também me distanciava de quem eu realmente era. Aprendi a esconder minhas emoções e a mascarar meu verdadeiro eu por trás de uma fachada de conformidade. Foi uma jornada difícil, marcada por conflitos internos e pela busca incessante por aceitação. A arte, nesse contexto, desempenhou um papel crucial em minha jornada de autorreconhecimento. Foi através de histórias, sobretudo “coming of age” do cinema, que entendi que a verdadeira força reside em abraçar quem somos, independentemente das expectativas externas. Descobri que a vulnerabilidade e a autenticidade são virtudes poderosas, capazes de criar conexões genuínas. Eu me conectei com personagens que de alguma forma passaram por aquilo que passei. Explorar a arte me proporcionou uma maneira de canalizar minhas emoções reprimidas. Cinema, música e literatura tornaram-se não apenas escapes, mas também meios de reafirmar minha identidade. Ao romper as barreiras da autoimposição, descobri uma liberdade interior que transformou minha perspectiva sobre masculinidade, vida e autenticidade.

    Além disso, a arte, em especial o cinema, me proporcionou algo que continua a transformar minha vida até hoje: a capacidade de ouvir, experimentar e sentir a vida do outro. Diante daquela projeção, concedia-me não apenas a liberdade de expressar minha particularidade, mas também a oportunidade de ouvir vozes que, semelhantemente à minha, clamavam por reconhecimento. Dessa forma acabei me entregando àquela tela de imagens em movimento. Foi assim que percebi como o cinema permite àquele que observa por trás da tela se aproximar do protagonista diante dela. Essa legítima aproximação oferece a experiência de sentir a dor ou a alegria que não é minha, representando a verdadeira prática da empatia. Costumo ponderar sobre a empatia como um exercício consciente. Somos muitas vezes condicionados a olhar para nós mesmos, estabelecendo nossas próprias experiências como um padrão para que os outros as sigam, seja em termos de religião, orientação sexual, entre outros. Por ironia, incorremos em uma espécie de paradoxo ao conformarmos a sociedade a determinados padrões, ao passo que a própria sociedade nos molda conforme os seus. Nesse contexto, o cinema se revela como um formidável educador no desenvolvimento da empatia, permitindo que, por meio de histórias narradas, possamos compreender as vivências alheias que de alguma forma fogem dessa padronização social.

    Essa capacidade do cinema de criar uma ponte emocional entre o espectador e as narrativas apresentadas não apenas amplia nossa compreensão do mundo, mas também nos desafia a questionar e a ultrapassar nossas próprias perspectivas. À medida que olhamos personagens diversos e nos envolvemos em suas jornadas, somos levados a enxergar a humanidade para além das fronteiras das nossas experiências pessoais. Assim, o cinema (e a arte como um todo), ao proporcionar uma janela para a vida do outro, promove um diálogo interno e social sobre a diversidade humana. Ele se torna um veículo de aprendizado sobre a complexidade das emoções, as nuances das relações e as variadas formas de existência. Ao absorver essas narrativas, somos desafiados a cultivar empatia e a abraçar a riqueza de ser humano que estão além do nosso próprio horizonte.

    Recentemente, experimentei de maneira impactante a profundidade da empatia ao assistir dois notáveis filmes: Crescendo Juntas (Kelly Fremon, 2023) e Incompatível com a Vida (Eliza Capai, 2023). Ambos apresentam narrativas que, pessoalmente, jamais vivenciarei. Em Crescendo Juntas, somos conduzidos pela jornada de amadurecimento de uma garota de 11 anos, explorando seu corpo, desejos e inseguranças. Já em Incompatível com a Vida, o documentário retrata a dolorosa trajetória de mães que enfrentam a perda de seus filhos antes mesmo do nascimento. Ao me deparar com realidades tão distintas da minha, compartilhei lágrimas, risos e a sincera esperança de que essas e todas as jovens e mães do mundo nunca enfrentem seus desafios sozinhas. Foi somente ao ouvir esses relatos que verdadeiramente pude compreender a complexidade dessas vivencias. Assim, por meio de lentes sensíveis, enquadramentos cuidadosos e um voyeurismo respeitoso, sinto-me imerso na vida do outro. A sinceridade capturada pelas lentes dos cineastas e os estímulos visuais frontais do cinema tornam palpável a experiência de sentir a arte no corpo, na pele e na alma. Nesse contexto, a arte revela-se como um poderoso meio de proporcionar empatia, permitindo que espectadores como eu mergulhem em realidades que, de outra forma, poderiam parecer distantes. É através dessas narrativas que as emoções humanas ganham vida, tornando-se tangíveis e, por vezes, compartilháveis. O cinema assim, ultrapassa a tela e se torna um veículo pelo qual nos conectamos emocionalmente com a vida dos outros, promovendo uma compreensão mais profunda e significativa do que significa ser humano.

    Enquanto redigia este texto, rememorei diversas situações em que o cinema se revelou como um mestre na arte de ensinar. Um episódio que permanece vivamente em minha memória é o dia em que assisti a Uma Mulher Fantástica (Sebastián Lelio,2017), um filme chileno que narra a trajetória de uma mulher transsexual. Naquele momento, experimentei uma intensidade emocional como nunca antes. A tela revelou a brutalidade enfrentada por essa mulher extraordinária, sendo sujeitada a sucateamento, violência física e desconsideração simplesmente por ser quem é. Essa história não apenas me devastou, mas, acima de tudo, me ensinou a compreender e respeitar mulheres como ela e tantas outras que enfrentam desafios similares. É lindo perceber o poder do cinema, como uma única imagem projetada em uma sala escura pode exercer uma influência tão profunda. Podemos sentir como as narrativas cinematográficas têm o potencial de transcender a tela, impactando nossas percepções e moldando nossas atitudes em relação aos outros. Agora, imagine se essa capacidade de promover empatia fosse incorporada e difundida no contexto educacional, nas escolas.

    A integração do cinema como uma ferramenta educativa poderia desencadear um impacto transformador na sociedade. Ao expor estudantes a diversas realidades, experiências e perspectivas por meio de histórias, estaríamos construindo as bases para uma compreensão mais profunda e inclusiva do mundo que nos cerca. O cinema, dessa forma, tornar-se-ia uma ponte para a empatia, promovendo diálogos e reflexões que  excedem fronteiras culturais e sociais. A educação cinematográfica nas escolas não apenas enriqueceria o repertório cultural dos estudantes, mas também incentivaria a empatia como uma habilidade essencial. A capacidade de se colocar no lugar do outro, compreender diferentes perspectivas e respeitar a diversidade seriam valores cultivados desde cedo. Assim, a experiência do cinema não se limitaria a uma sala escura, mas se estenderia para moldar uma sociedade mais compreensiva e tolerante. Afinal, o cinema transformou significativamente a minha existência, por que não teria o potencial de influenciar igualmente a vida de tantos outros?

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