Em um período em que o cinema é amplamente dominado por adaptações, novas concepções começam a emergir. Embora seja importante observar que o cinema-videogame e o cinema vulgar não são fenômenos recentes, foi a partir dos avanços visuais apresentados pelo cinema dos anos 2000 que tais projetos ganharam maior destaque. Neste artigo, abordaremos a franquia de sucesso Resident Evil, assim como o cinema vulgar e o cinema gamificado.
A gamificação do cinema é uma tendência notável em obras que incorporam elementos característicos dos videogames, proporcionando uma experiência cinematográfica que se torna uma jornada imersiva. Essa abordagem não se limita apenas às adaptações de jogos, mas também se manifesta por meio de uma variedade de recursos, desde a estrutura narrativa até a estética visual, demonstrando uma convergência entre os dois universos. No cinema gamificado, podemos observar uma estrutura segmentada que evoca as fases de um jogo, com o protagonista enfrentando novos desafios e obstáculos a cada etapa, refletindo assim uma progressão similar àquela encontrada nos jogos.
Aqueles familiarizados com jogos de plataforma compreendem bem a abordagem que frequentemente se concentra em torno de um tema central, como a sobrevivência. Ao incorporar esse estilo em uma dinâmica cinematográfica, introduzem-se elementos característicos dos videogames, como avatares, simulações e objetivos claros. O ambiente em que o personagem se encontra, portanto, detém um poder narrativo muito mais significativo do que a própria história; em outras palavras, a interação entre o espaço e o personagem é mais preponderante do que o texto narrativo. Afinal, em um jogo, o jogador está mais preocupado com as movimentações, as fases e a estratégia para derrotar o vilão, tirando o máximo proveito dos elementos proporcionados pelo cenário, do que com a narrativa em si.
Que tal invertermos as propostas para facilitar? E quando os jogos tentam ser mais cinematográficos? Temos gameplays muito focados na história e no poder da narrativa. Jogos como Detroit: Become Human, Until Dawn, entre outros, assim como jogos como Uncharted e The Last of Us, possuem um peso narrativo significativo. Não é que o cinema-videogame não tenha história ou que jogos cinematográficos não tenham gameplay, mas seus pontos focais estão direcionados para a ideia apresentada.
Partindo desse ponto, temos Paul W.S. Anderson, um diretor que, juntamente com as irmãs Wachowski, foi o que compreendeu melhor essa relação formal entre o cinema e os videogames. Na franquia Resident Evil, ele propõe uma espécie de reset visual, transportando o espectador para uma realidade alternativa repleta de zumbis e desafios. Logo no primeiro filme (RE:O Hospedeiro Maldito), nos deparamos com uma personagem (Milla Jovovich) que vive uma vida falsa, sem passado e confusa, sendo jogada aos lobos (ou mortos-vivos), como se ela fosse parte de um “game over” que acabou de recomeçar.
A partir daí, a personagem enfrenta puzzles variados e desbloqueia habilidades e armas, que são elementos típicos dos videogames. Resident Evil: Apocalipse e Resident Evil: Retribuição ilustram bem essa ideia: cada batalha ocorre em um espaço distinto, com desafios próprios e dinâmicas de combate diferentes. Cada cenário/fase apresenta uma maneira específica de ser concluído. Nesta concepção cinematográfica gamificada, o ambiente desempenha um papel crucial, transformando-se em etapas ativas que se adaptam conforme a narrativa avança.
A protagonista, portanto, assemelha-se mais a uma jogadora, navegando por desafios e lutando pela sobrevivência, do que a uma personagem com profundidade dramática — entenda que isso não significa que ela não tenha um drama pessoal, porém que o desenvolvimento total está em como ela se adapta a cada cenário e sua peculiaridade. O percurso é delineado não pelo avanço de um drama psicológico proposto, mas sim pela essência espacial, onde a cenografia se transmuta constantemente. Assim como acontece em RE:Retribuição, os cenários são literalmente criados, manipulados e destruídos, explorando as possibilidades imaginativas do cinema de ação – gameficado.
O interessante é que a própria personagem (Alice) parte de uma ideia de si mesma que vai sendo transformada ao longo do tempo, assim como um jogador que melhora sua jogabilidade ao longo de um jogo. A personagem-jogadora se aprimora à medida que passa mais tempo jogando. Não é à toa que no capítulo final da franquia temos uma Alice muito mais habilidosa do que no início, seguindo a mesma lógica de um jogador que joga o mesmo jogo há anos; é claro que ele se tornará um especialista. Paul W.S. Anderson, portanto, evolui a gamificação a cada filme que passa, isso fica mais claro quando percebemos seu retorno à franquia como diretor após o segundo e terceiro filme. A partir da quarta sequência, a gamificação parece estar muito mais madura, formalmente falando e com uma estética mais consciente.
Anderson adota um cinema de referências, incorporando as características de um dos grandes precursores do cinema-videogame, Matrix. Resident Evil: recomeço, por exemplo, compartilha muitos elementos com Matrix, ambos os filmes se destacam pelo anti-realismo, brincando com a inventividade do CGI para espetacularizar as cenas de ação. Os momentos mais marcantes de RE:recomeço configuram uma espécie de “matrixzação”, como a cena inicial com os clones da Alice caçando Wesker, que acaba sendo uma alusão ao embate entre Neo e Agente Smith, e a batalha final que segue essa mesma ideia. Admiro como Paul utiliza o recurso do “Slow” na ação para intensificar a imersão gamificada do espectador. Essa abordagem é tão bem integrada à narrativa que o absurdismo visual como acrobacias, piruetas, mortais e super pulos funcionam.
Dessa forma, em Resident Evil tudo é elevado à grandiosidade da imagem, adotando um autorismo vulgar significativo para a franquia. Sendo assim, Paul cria um ambiente de total abandono da verossimilhança. O real aqui não se faz necessário, pois estamos diante da união de universos completamente imaginários (cinema e videogame), onde os mortos não morrem, os vivos se regeneram e os heróis “resetam”. Ele não economiza na imaginação, seja nos efeitos especiais um tanto exagerados ou na montagem que potencializa e “romantiza” a pirotecnia.
Na dinâmica dos cenários e na explosão dos estímulos, ocorre uma liberdade que permite conjurar componentes diversos sem a necessidade de justificar absolutamente nada. É o “poder” de um estúdio milionário nas mãos de um autor que visualiza um mundo de diversidade fantástica. Paul W.S. Anderson não teme os olhares que buscam grandes reviravoltas ou sentido no cinema; pelo contrário, ele produz filmes para aqueles que apreciam o cinema como arte da ilusão. Resident Evil é uma franquia onde tudo é possível, onde sobreviventes coexistem com super-humanos, zumbis tradicionais, monstros voadores e até mesmo uma fábrica de clones.
A narrativa se desdobra através do espaço e da violência, espelhando a dinâmica dos videogames onde o cenário é um personagem que impulsiona o protagonista a evoluir. É uma relação direta de causa e consequência, em que o meio instiga, a brutalidade clama e o indivíduo responde. Nota-se que a ação não se apresenta como um elemento Gore; na verdade, raramente vemos o sangue espirrar na tela. Paul busca criar sequências violentas dinâmicas e visualmente impactantes, utilizando recursos linguísticos, como ângulos de câmera criativos, movimentos de câmera complexos e técnicas de edição elaboradas. Ele se aproveita de diferentes perspectivas, como planos detalhes, câmera na mão, (principalmente) slow motion, entre outras, para proporcionar uma sensação de imersão e movimento. Aqui reside o cerne da violência de Resident Evil: no movimento e nas possibilidades que ela oferece diante do cinema.
Assim, a franquia Resident Evil se destaca entre os melhores do cinema gamificado, como uma forma de entretenimento que ultrapassa os limites “tradicionais” do cinema, proporcionando ao espectador uma experiência imersiva, onde os elementos narrativos e estéticos dos videogames se fundem com a linguagem cinematográfica para criar obras vívidas, exageradas, potentes e com um estilo épico. Saúdam Paul W.S. Anderson pelo primor do cinema vulgar.