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Carro Rei | Conheça Jules* Elting, artista trans não-binárie que protagoniza; Confira!

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Vencedor de cinco troféus no 50º Festival de Gramado, incluindo o Kikito de melhor filme, Carro Rei chega ao circuito comercial no próximo dia 30 de junho. O longa-metragem dirigido por Renata Pinheiro traz no elenco nomes como Jules* Elting, Matheus Nachtergaele, entre outros. Pessoa trans não-binárie, nascide na Alemanha, Jules* tem atuação de destaque como Mercedes, uma artista feminina que carimba símbolos contra o poder masculino em praça pública na calada da noite. Para o papel, elu saiu de Berlim, onde mora atualmente, e foi gravar em Caruaru, fazer sua estreia no audiovisual Pernambucano – renomado pólo de cinema nacional.

“A preparação para o filme foi intensa. Foi algo muito teatral, muito físico. Além, sempre, do forte psicológico que é criar uma persona”, conta Jules*, que para o longa-metragem precisou contratar personal trainer e também passou a fazer aulas de pole dance para se preparar para sua personagem e realçar sua performance. “Quando tenho um novo papel gosto de fazer mergulhos profundos e criar todo o universo dessa pessoa, mesmo que no resultado final seja visto momentos específicos deste mundo construído.”

Nascide em Hamburgo e criade em Frankfurt, Jules* chegou no Brasil em 2005 (onde viveu até 2015) a convite de Zé Celso Martinez para integrar a companhia Teatro Oficina. Mesmo sem falar português, chamou a atenção do diretor e seu grande elenco em uma temporada da trupe em Berlim. Aprendeu a língua com Euclides da Cunha, nas leituras e encenações de “Os Sertões”, no tradicional bairro paulistano do Bixiga, e também nas comunidades paulistanas, onde fez grandes amigos e se habituou às gírias e modos linguísticos locais.

Até então artista de teatro, foi nessa vivência no Brasil que Jules* começou a conhecer o trabalho com cinema. “Na Alemanha, é tudo muito segmentado: quem dança, dança; quem atua, somente atua; e por aí vai. Aqui você é artista, pensa como artista, pensa no todo”, compara. “Carro Rei” não foi o primeiro papel de Jules* no cinema brasileiro. Antes, elu fez participações em filmes como A Via Láctea (2007) e Encarnação do Demônio (2008), já considerado um clássico moderno de Zé do Caixão; também esteve em competição no Festival do Rio com o longa “Alguma Coisa Assim”, de Esmir Filho (2017), entre outros ao longo da década.

O primeiro grande trabalho no cinema, foi em “O Ornitólogo” (2016), de João Pedro Rodrigues – diretor português conhecido desde o fim dos anos 90 por seus filmes icônicos de tópicos LGBTQIA+ como a amazona Diana. Logo na estreia, o filme já recebeu leopardo prateado do renomado festival de Locarno, na Suíça, e rodou o mundo representando uma virada na carreira delu.

Uma vida com três nascimentos

Artista multifacetade, Jules* Elting considera que teve três nascimentos ao longo da sua vida. O primeiro foi quando veio ao mundo. Desde criança, na Alemanha, elu queria atuar. “É algo que realmente vem de dentro, que faz parte de mim”, comenta. Jules* credita o início da carreira ao sistema de teatros estaduais da Alemanha. Em Frankfurt, onde cresceu, fez a primeira peça profissional aos 17 anos e ficou em cartaz por dois anos, com mais de 80 apresentações.

O contato com o Brasil veio através do Teatro Oficina, em 2004. Jules* ficou sabendo que a companhia se apresentaria em seu país. Era uma montagem de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, e elu marcou presença na plateia, se apaixonou pelo formato tropical e passou a conviver com o elenco. Foi então que Zé Celso disse que precisava de uma pessoa que soubesse atuar e dançar. Formade em dança contemporânea na Martha Graham School, em Nova York, Jules* impressionou o diretor. Numa nova temporada pela Alemanha, elu já foi convidade por Zé Celso para substituir uma atriz brasileira e assumiu seu primeiro trabalho com a companhia.

“Por trás daquele conhecido movimento carnavalesco do Teatro Oficina, tem uma cabeça coletiva muito inteligente. É uma companhia que trabalha duro. Principalmente os não-homens que ali estão me inspiraram com a dedicação, criatividade e talento. Então, falaram que duas pessoas da companhia estavam alugando uma casa em São Paulo e eu decidi ir junto, morar com eles e viver isso de verdade”, lembra Jules*. “Cancelei todos os contratos. Telefone, internet, plano de saúde e apenas fui.” Aquilo então, para elu, iniciou o seu segundo nascimento. “No Oficina eu fui tirando as cascas, pouco a pouco. As cascas da educação do teatro alemão. Da auto limitação”, conta.

O português aprendeu escutando e lendo (muito Euclides da Cunha), na base da repetição e memorização. “Meus primeiros personagens no Oficina eram bichos e coros – não necessariamente eu sabia o que eu estava falando. Mas pelo menos os animais são universais”, se diverte. “Aos poucos, fui aprendendo o português e ganhando outros personagens e falas. Até que protagonizei Cacilda Becker ao lado de Bete Coelho”, comenta.

A vida no Brasil durou dez anos. “Eu estava com apetite de me arriscar de novo. Sou uma pessoa que busca o risco, principalmente como artista”, define, ao justificar o retorno para a Alemanha. “E, pensando também no inconsciente, acho que eu precisava morar em Berlim para entender quem eu era além de artista”.

É neste contexto que chega o terceiro nascimento, que Jules* atrela a sua identidade. Elu brinca que é um Corona Baby, por ter nascido trans não binárie há dois anos, já durante a pandemia de Covid-19. “No lockdown, sem personagens, sem palco, protagonizei minha própria vida e mergulhei em mim, em quem eu sou. Foi pela comunidade virtual que eu fui conhecer outras pessoas trans não binárias, aprender termos que até então eram desconhecidos. Foi uma felicidade e também um choque dentro de mim. De repente tudo fazia sentido”, conta Jules* — o asterisco faz parte do nome, como se fosse um acento mudo.

Por muito tempo, elu não entendia sua identidade. Achava ser feliz somente no trabalho, incorporando personagens era o suficiente: “como se fosse uma coisa comum de artista”. “Fora do palco me sentia extraterrestre. Sempre senti como não fazer parte. Ser de fora. Só se sentir completamente em meu potencial como ser humano, e pessoa plena, no palco”, reflete. “Vim de um lugar, de um sistema, como todes nós, que me diz que pessoas como eu não existem. Somos invisibilizades e por isso é tão difícil se reconhecer e ter esse momento de identificação consigo”.

Agora consciente de sua identidade como pessoa trans não-binárie, Jules* tem sido também ativista da causa. “São raros personagens não-bináries e trans em contextos que não sejam de violência, de morte ou distúrbio mental. Me entender como sou trouxe o receio do fim da carreira, de não ter espaço ou papel para uma pessoa como eu”, comenta. “Tive a sorte de, logo quando entendi minha identidade, participar de um grande movimento coletivo na Alemanha, o ActOut, que abalou a indústria cinematográfica e da dramaturgia, com 185 pessoas se declarando publicamente LGBTQIA+ jogando luz na falta de diversidade nos palcos, roteiros, sets de gravação”, explica elu.

Um dos marcos deste novo nascimento veio em junho de 2021, quando Jules* apresentou o Teddy Award, renomada premiação do Festival de Berlim voltada a obras de temática LGBTQIA+. Antes mesmo, o reconhecimento da indústria veio, em 2020, quando protagonizou, ao lado de Wilma Azevedo o filme brasileiro de Gustavo Vinagre na Berlinale, depois de, em 2019, ter sido escolhide como uma das três pessoas atuadores alemãs para o prestigiado Talent da Berlinale, Festival Internacional de Berlim.

Na Biennale de Veneza 2022, Jules* protagoniza o longa-metragem “Vampires in Space”, de Pedro Neves Marques (elu/delu). Ao lado de Zahy Guajajara e Puta da Silva e mais duas atrizes portuguesas, elu vive um vampire trans em uma nave espacial. O projeto traz reflexões sobre gênero, família escolhida, saúde mental e questões de meio ambiente e futurismo. No Brasil, chega em 2023, no Paço das Artes, em São Paulo, além de Alemanha, Açores, Portugal e mais.

Também, neste último mês do orgulho LGBTQIA+, foi anunciade na lista de “Prout At Work” em 5º lugar (de 45) como pessoa que se destaca na influência e representatividade nas artes, mídia e cultura. A tradicional nomeação alemã revela pessoas que dão visibilidade LGBTQIA+ em diversos campos de trabalho.

 

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