Nos últimos quatro anos, o Brasil tem atravessado uma espécie de “pós-retomada” cinematográfica — um novo ciclo criativo que se mostra vigoroso tanto no circuito mainstream quanto, especialmente, no cinema independente. Esse movimento pode ser atribuído, em grande parte, à retomada de políticas públicas de incentivo à cultura e ao audiovisual, que têm garantido a artistas e realizadores não apenas recursos financeiros, mas também a liberdade para explorar novas estéticas, narrativas e formas de pertencimento.
Essa revitalização se reflete com força nos festivais, nacionais e internacionais. Em mostras ao redor do mundo, o cinema brasileiro tem marcado presença constante, com obras que não apenas representam o país, mas o ressignificam diante do olhar estrangeiro. Já nos festivais nacionais, o que se observa é uma efervescência autoral difícil de ignorar: cineastas promissores, vindos das periferias, das regiões historicamente marginalizadas ou de grupos sub-representados, têm encontrado nesses espaços a oportunidade de mostrar sua voz e suas visões de mundo.
O Cine PE é um exemplo notável nesse cenário. Um dos festivais mais longevos e queridos do país, tem se consolidado como um verdadeiro celeiro de talentos. A cada edição, o evento se abre mais à diversidade estética e identitária do cinema brasileiro, apostando em obras que, muitas vezes, não teriam espaço em outros circuitos. Este ano, tive o prazer de acompanhar uma dessas apostas: o longa Nem Toda História de Amor Acaba em Morte, uma produção que mergulha no universo da comunidade surda e da Língua Brasileira de Sinais (Libras).

No longa, acompanhamos a trajetória de Sol (Chiris Gomes), uma pedagoga de 50 anos que vive um relacionamento longo e esvaziado, à beira do colapso. Quando finalmente decide romper com o ciclo de insatisfação, cruza o caminho de Lola (Gabi Grigolom), uma jovem atriz surda. A partir do momento em que ambas decidem mergulhar de forma definitiva nessa nova relação, conflitos emergem: questões mal resolvidas com o ex-marido, redescobertas pessoais e embates com as expectativas da própria vida.
Sob a direção sensível de Bruno Costa, o filme oferece um olhar despretensioso, mas carregado de afeto e empatia. É um retrato do cotidiano que se nutre do “comum”, do que não é dito, do silêncio que produz tesão, vida e intimidade. Costa dirige seu olhar para mulheres complexas, vívidas — duas protagonistas tão reais que fascinam nosso olhar. De um lado, Lola: uma mulher surda, jovem, lésbica, mãe solo, atriz. Do outro, Sol: em seus cinquenta anos, divorciada, pedagoga, ainda em processo de autoconhecimento. O contraste não impõe hierarquias; antes, equilibra uma narrativa que celebra as dores, as descobertas e as pequenas potências de cada uma. Gosto particularmente de como Sol ainda tem chance de experimentar a vida, de conhecer a si, seus desejos, prazeres, dores e limites. É lindo como ele contempla Sol — é no ato de apontar a câmera para esse mulher tão “comum” que ele a torna tão especial.
Chiris Gomes e Gabi Grigolom sustentam o filme com atuações firmes, sinceras, sem excessos. A câmera de Costa prefere o plano médio, o close intimo mas nunca invadindo os espaços, sempre respeitando — e é nesse jogo de acolhimento e presença que o filme constrói seu impacto. Sem pressa, sem urgências artificiais, ele decanta emoções e situações, e revela o amor não como espetáculo, mas como prática de cuidado e atenção. Em tempos em que narrativas que rompem com a heteronormatividade, com a ditadura do corpo ideal e de paixões trágicas, o filme de Bruno Costa surge quase como um ato de revolução, reforçando seu lugar ao dar voz e espaço a vidas tão interessantes. É dessa escuta atenta, desse afeto cinematográfico, que se faz uma obra de fôlego — e de relevância.