A filosofia existencial é uma corrente que se concentra na experiência humana individual, na liberdade, na responsabilidade e na busca de significado na vida. Essa doutrina filosófica é um movimento intelectual que teve como grande problemática a forma como o indivíduo se vê no mundo, com foco na experiência de um ser que pensa, age e sente. Uma das ideias centrais do existencialismo é a noção de que os seres humanos existem primeiro e, em seguida, definem seu próprio significado e propósito na vida. Isso contrasta com a visão tradicional de que as pessoas têm um destino predeterminado. Os existencialistas acreditam que somos responsáveis por nossas escolhas e ações, e que essa responsabilidade é uma fonte de ansiedade e angústia. A angústia, portanto, é uma experiência fundamental na filosofia existencial. Ela surge quando nos confrontamos com a liberdade de escolher e a responsabilidade de dar sentido às nossas vidas. A angústia existencial é muitas vezes vista como uma emoção que acompanha a consciência da nossa finitude e da falta de um significado absoluto no universo.
O existencialismo emergiu no final do século XIX e floresceu ao longo do século XX, influenciando diversas áreas da cultura, incluindo a literatura, a pintura, o pensamento político e o cinema. Em razão disso, a corrente filosófica também encontrou expressão no cinema, com diversos diretores abordando seus temas e conceitos em suas obras. De Akira Kurosawa a Federico Fellini, o cinema existencial utiliza de sua linguagem para tratar das angústias humanas. Mas foi Ingmar Bergman que trouxe da melhor maneira o existencialismo em tela, pois frequentemente colocava seus personagens em conflitos entre suas personas e suas realidades, onde lutavam incansavelmente com o sentido da vida e o temor da morte.
Nesse contexto, emerge o filme “Travessia”, dirigido por Gabriel Lima e escrito por Juliane Araújo, que também desempenha um papel na produção. Este filme explora questões profundamente humanas, como o medo, a vulnerabilidade e o desconforto, ao narrar as histórias de dor e questionamento dos personagens Elis ( Juliane) e Vicente (Caio Blat), cujos destinos se entrelaçam quando compartilham o mesmo espaço em diferentes momentos. “Travessia” adota uma abordagem cênica altamente íntima, utilizando uma decupagem que, ao mesmo tempo que aproxima o espectador dos sentimentos dos personagens, também causa-lhes angustia pelo seu foco intenso nos closes que aprisionam a imagem. Elis e Vicente encontram-se confinados, não apenas por seus pensamentos, mas também pela representação visual que os cerca.
A mise en scène desempenha com maestria o papel de transmitir, através da tela, toda a complexidade psicológica desses personagens. Somos levados a uma jornada pelos pensamentos e reflexões profundas deles, expressos por diálogos e monólogos tão afiados quanto uma agulha, porém, ao mesmo tempo, poéticos e dotados de uma profundidade que se assemelha ao próprio oceano em sua imensidão. Além disso, o curta exibido no Cine PE 23 frequentemente desafia as convenções narrativas “tradicionais”, usando estruturas não lineares ou experimentais para expressar as complexidades da condição humana e para gerar um desconforto por parte do espectador. É notável como o diretor trabalha com maestria para transmitir as angústias não apenas através dos diálogos, mas principalmente através da imagem. Suas escolhas de enquadramento confrontam aqueles que apenas podem observar passivamente. Seus planos são frequentemente posicionados de baixo para cima, distorcendo a proporção de todos os objetos e pessoas. É como se a câmera nos dissesse que a maneira como observamos o mundo orienta o seu desafio. Dessa maneira, a forma como o Gabriel Lima elabora suas cenas aproxima-se muito de uma ideia existencialista.
Vicente está em busca de compreender seu propósito no mundo, especialmente após ter passado por uma experiência de quase morte. Ele se esforça para entender se a morte possui algum plano específico para sua existência neste universo. Por outro lado, Elis parece abordar a vida de forma menos preocupada com o que a morte ou os cosmos podem oferecer. Para ela, a felicidade não é uma necessidade imperativa; basta estar viva. Viver, para Elis, é contemplar, experimentar, chorar, e chorar novamente. “Travessia” é um curta-metragem de beleza sublime que nos instiga à reflexão a cada imagem e a cada sentença proferida. As atuações magistrais dos protagonistas são complementadas por uma direção igualmente magnífica.
Curta assistido no festival de cinema CinePE 2023