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Início Críticas Crítica 2 | Assassinos da Lua das Flores

    Crítica 2 | Assassinos da Lua das Flores

    Uma genuína ostentação responsável e majestosa do conjunto da obra de Martin Scorsese, com direito a novidades

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    [ATENÇÃO: O TEXTO A SEGUIR PODE CONTER SPOILERS DE ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES]

    Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon), aborda uma série de assassinatos misteriosos na década de 1920, assolando os membros da tribo Osage, uma rica comunidade indígena proprietária do petróleo na região do Oklahoma. Os crimes acabam desencadeando uma grande investigação envolvendo o governo dos EUA.

    A forma como o cultuado diretor Martin Scorsese comumente conduz seus trabalhos cinematográficos ainda consegue surpreender positivamente mesmo aquele espectador mais familiarizado com sua obra. Ainda que o diretor estabeleça um desenvolvimento próprio, ou seja, recheados de elementos autorais que dão ao longa-metragem a assinatura dele, Scorsese possui a icônica habilidade em se inovar dentro das suas ideias mais tradicionais. Assassinos da Lua das Flores não entrega uma retratação histórica norte-americana, devido aos assassinatos cometidos contra o povo Osage, mas cutuca na ferida e abre espaço para desenvolver críticas bem construídas e atuais contra o genocídio e a apropriação, tudo isso sem a hipocrisia de reproduzir os fatos por meio da visão Osage, já que o realizador do longa não é indígena, e sim pelo ganancioso e mesquinho olhar do homem branco, o que vem a ser chocante, além de atribuir autenticidade a produção.

    Baseado no livro “Assassinos da Lua das Flores: Petróleo, Morte e a Origem do FBI”, de David Grann, o ambicioso longa de Scorsese conta a história real da série de assassinatos de membros da tribo Osage nos EUA no começo do século 20, em aproximadamente 3 horas e 20 minutos, tal como uma das produções mais recentes do cineasta, O Irlandês (2019). Porém, diferente do longa da Netflix com Robert DeNiro, Joe Percy e Al Pacino, Lua das Flores não desperdiça sua longa metragem em sequências que estão no corte final somente para sobrar, sequer segue uma inegável monotonia (lembrando que O Irlandês é um grande filme, mas, em alguns momentos, não evita momentos de tédio) do longa anterior, nem mesmo se comporta como massivo ou prolixo, apesar de claramente complexo. A versatilidade do roteiro adaptado pelo próprio Scorsese, juntamente com Eric Roth (Duna), permite uma narrativa detalhada, porém longe de excessos, e sim bem vindas adições que até refletem na própria história estadunidense, o que vai agradar tanto historiadores quanto entusiastas do tema.

    Imagem: Apple TV+/Reprodução

    Eficiente, além de também devidamente desenvolvida, a escrita de Assassinos da Lua das Flores não hesitar em revelar seu impacto, evitando se mascarar através de críticas mal expostas ou argumentos formados e auto explicativos, utilizando o absurdo dos crimes cometidos pela comunidade branca do local dos crimes contra os Osage como principal condutor da história, sem medo de negar os atos hediondos que evidenciam mais o racismo e supremacia branca norte-americana, a fim de expor esses crimes que, infelizmente, não deixaram de perpetuar na América. A condução mais que funcional e minuciosa de Scorsese mergulha na perfeição em recontar os fatos, além de procurar, com visíveis detalhes e cautela, respeitar ao máximo a cultura indígena e deixar claro que os crimes absurdos contra os povos originários das Américas, não só naquele triste episódio no início do século XX, não devidamente combatido, sequer noticiado.

    Em Assassinos da Lua das Flores, Scorsese vê a grata oportunidade de, mais uma vez, abordar o crime e suas influências na construção da história, aproveitando o cenário pós-velho oeste para também estabelecer uma curiosa conexão com o gênero western, que tanto proporcionou interessantes debates e subtemas que caem como uma luva na linguagem cinematográfica de um modo geral quanto no estilo narrativo do diretor. Sequências de violência crua, brutal e altamente covarde, assim como cenas de tiroteios onde rajadas de balas não são poupadas, são bem conduzidas, montadas e finalizadas, prezando pelo realismo das ocasiões.

    Martin Scorsese conduz um elenco de extremo compromisso com a obra, de maneira nobre e memorável. Leonardo DiCaprio, que interpreta o, até então, inocente Ernest Burkhart, que é, na realidade, um dos grande envolvidos nos cruéis assassinatos dos Osage pelo patrimônio indígena, entrega com maestria um personagem complexo, além de totalmente equivocado e ignorante, deixando ser guiado pela malícia e engenhosidade do igualmente maligno tio, Bill Hale, interpretado pelo incomparável Robert De Niro. Scorsese não esconde a perversidade dos personagens de sua dupla favorita de atores, assim como também não poupa abordar a desconfiança e revolta da comunidade indígena da pequena cidade de Fairfax. Neste segundo núcleo principal, nos deparamos com a exuberante atuação de Lily Gladstone, atriz em ascensão que entrega a indígena Mollie, amalgamando uma interpretação impactante em momentos de debilitação e persistência de sua personagem. Cara Jade Myers também surpreende ao interpretar a irmã mais velha de Mollie, Anna Brown, que acaba se tornando uma das vítimas devido ao seu temperamento forte e comportamento extravagante, além de suas riquezas. Completam o elenco do longa Jesse Plemons e Brendan Fraser, em papéis pequenos que só dão as caras no terceiro ato do longa, e William Belleau, Scott Shepherd, Janae Collins, entre outros que também se destacam.

    Imagem: AppleTV+/Reprodução

    A inegável obra-prima de Martin Scorsese também chama atenção pela complexidade técnica e visual. Não só o dialeto do povo Osage foi respeitado e utilizado ao longo da trama, como também o rico figurino e utensílios, já que o fim e conta com uma reprodução genuína dos costumes da comunidade. A reconstrução do Estado de Oklahoma da década de 1920 do século passado também é altamente detalhista, com direito a automóveis, roupas, móveis e demais construções que remetem perfeitamente à época, além da releitura de retratos produzidos naquela época dos ricos povos originários que eram proprietários daquelas terras. A trilha sonora do infelizmente falecido Robbie Robertson (que mantinha uma duradoura parceria com Scorsese), ostenta instrumentos de percussão, com instigantes batidas, além do uso de vozes e instrumentos de sopro, distribuídos sabiamente ao longo da trama. A fotografia de Assassinos da Lua das Flores escolhe oscilar entre tonalidades frias e amadeiradas, reforçando um tom melancólico e de injustiça, além de combinar com a perversidade da ganância do homem branco a medida que as cores das imagens vão esquentando. Planos abertos, que valorizam os cenários construídos digital e manualmente, também se encontram em abundância ao longo das 3 horas e 20 minutos de duração do filme.

    Para quem está familiarizado com a magnificência de uma obra ambiciosa de Martin Scorsese, que entrega exatamente aquilo que promete, a longa duração de Assassinos da Lua das Flores não é um problema, muito pelo contrário. O soco no estômago que o público recebe a medida que a trama se desenvolve também impossibilita uma monotonia em 3h20min. Contado e filmado de maneira majestosa, fica evidente que Scorsese tenha criado mais uma obra essencial para ser conferido especialmente pelos estudiosos e amantes da sétima arte.

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