Após mais de 20 anos dado como desaparecido, o esperto João Grilo (Matheus Nachtergaele) retorna para Taperoá e reencontra com seu fiel escudeiro Chicó (Selton Mello), que carrega adiante a história de que Nossa Senhora operou um milagre e ressuscitou o amigo. Agora, em O Auto da Compadecida 2, João é considerado uma espécie de santo e seu status de celebridade chama a atenção especial de dois poderosos candidatos à prefeitura da cidade. Vendo toda essa comoção como uma oportunidade para se dar bem, João Grilo organiza um de seus famosos trambiques. Porém, tudo deve acabar se tornando uma grande presepada, como de costume.
A faculdade simbólica do renomado escritor e dramaturgo Ariano Suassuna de construir um universo repleto de regionalismo e crenças populares está estampada no movimento Armorial e nas suas obras de maior sucesso. Lançada em 1955 e exibida pela primeira vez em 1956 no Teatro de Santa Isabel, na cidade do Recife (PE), O Auto da Compadecida é um reflexo da esperteza, sagacidade, resistência e crendice do povo brasileiro, principalmente na região Nordeste do país, ganhando ainda mais destaque após o lançamento da minissérie e longa-metragem homônimos dirigidos por Guel Arraes (Lisbela e o Prisioneiro), nos anos de 1999 e 2000, respectivamente. Agora, 25 anos depois, a dupla João Grilo e Chicó está de volta para as telonas em uma trama morna e sem grandes novidades, porém repleta de simbolismos que fazem jus à criação de Ariano e respeitam tanto a concepção imagética do autor, reunindo elementos teatrais e circenses, quanto o desejo de mostrar a força do povo nordestino Brasil afora sob um olhos genuinamente regionalista e repleto de referências à fé e à cultura popular.
Revisitar uma obra tão querida, e que continua sendo um belo exemplo do aperfeiçoamento da identidade técnica e narrativa do cinema brasileiro, como O Auto da Compadecida, não era uma tarefa fácil, tanto que a sequência acaba se tornando um inevitável comparativo com obra anterior, tanto pelo seu humor quanto devido a abordagem narrativa desse novo filme, o que não vem a ser prejudicial, mas não deixa de ser um grande desafio. A produção de Guel Arraes lançada em 2000 inegavelmente serve como obra cinematográfica definitiva baseada no clássico de Ariano Suassuna, superando os filmes anteriores, A Compadecida (1969) e Os Trapalhões no Auto da Compadecida (1987), tanto que, após 24 anos, não foi realizada uma outra adaptação da obra para os cinemas.
Em O Auto da Compadecida 2, a equipe de produção composta por Edson Pimentel, Guel Arraes, Pedro Buarque de Hollanda, Sandro Rodrigues mostra coragem ao produzir ainvestir na sequência tardia de um filme tão apreciado pelo público, apostando em um roteiro, assinado por Jorge Furtado, João Falcão, Adriana Falcão e pelo próprio Arraes, que reúne elementos da obra de Ariano, que não teve uma sequência escrita para a literatura ou teatro, juntamente com referências claras à peça A Farsa da Boa Preguiça (1960), como a inclusão da personagem Clarabela (Fabiula Nascimento), sendo aqui filha do Coronel Ernani (Humberto Martins) e interesse amoroso de Chicó, antes de se tornar amante de Arlindo (Eduardo Sterblich). Apesar de ser uma saída fácil para a captação de novas histórias, em O Auto da Compadecida 2 os diretores Flávia Lacerda e Guel Arraes demonstram se sentir à vontadade para explorar o universo de Ariano Suassuna e suas possibilidades, porém há momentos em que o longa parece querer acelerar as subtramas envolvendo esses personagens secundários mencionados, a ponto de gerar uma icômoda “história contrada pela metade”, o que pode ter sido ocasionado por um trabalho de edição igualmente apressado, cujo os cortes rápidos até fazem sentido no início do longa ao reapresentar João Grilo e Chicó tramando suas novas investidas de maneira mais dinâmica e que pudesse se didática o suficiente a fim de entreter o público com as ideias e diálogos inusitados dos personagens. A trama secundária que tem seu início, meio e fim, aqui nesta nova produção, envolve dois personagens já conhecidos pelo público: Chicó e Dona Rosinha (Virginha Cavendish), cujo a química é tão instigante quanto a do deuteragonista com João Grilo. O reencontro do casal, separado por conta de imprevistos da vida, acontece de uma maneira sultilmente bonita, ao som de um dos maiores clássicos da música brasileira, que pode ser considerada um dos momentos inusitadamente mais bonitos do filme, tendo uma clara (porém, não escancarada) associação ao seu antecessor.
Mesmo visivelmente procurando sobressair a escassez de um conteúdo inédito com uma fácil mesclagem entre duas grandes obras teatrais de Ariano Suassuna, além de procurar reinventar conceitos sociais já abordados pelo autor a fim de adaptá-las para um Brasil atual, onde conflitos frequentes entre política, fé e condições sociais continuam a moldar o cenário antropológico do país, o roteiro de O Auto da Compadecida 2 parece procurar abrigo nas sombras do primeiro ao buscar por uma identidade própria, não arriscando cair de cabeça no que foi proposto. Se nesse novo filme há um interessante argumento para uma abordagem “política X fé”, faltou um interesse maior em desenvolver tal ideia a ponto de tornar o cenário cômico e caótico ainda mais genuíno, por parte da produção. Ao invés dessa façanha, optaram pelo caminho teoricamente mais seguro de repetir o que já deu certo. A partir do terceiro ato do longa, exatamente na sequência do auto, onde João Grilo precisa passar por mais um julgamento divino com Jesus Cristo como juiz, o diabo como promotor e a Compadecida como sua advogada, o filme se repete, mas sem o mesmo impacto nos diálogos e até nas atuações. Aqui, nós temos Matheus Nachtergaele representando tanto a imagem de Cristo quanto a do “Coisa Ruim”, em uma referência bíblica bem pensada e caracterizada, já que o ator se dedica intensamente ao papel. No entando, Taís Araújo, apesar da divina caracteriação e de estar notavelmente instgada a representar Nossa Senhora – ocupando um papel de extrema responsabilidade, já que no filme anterior a Compadecida foi interpretada por ninguém menos que Fernanda Montenegro – não tem o tempo de tela necessitado para demonstrar sua magnificência. Com um desfecho altamente semelhante à produção de 2000, o terceiro ato de O Auto da Compadecida 2 sofre do mesmo obstáculo que não permite que as subtramas dos personagens secundários do filme prosperem: agilidade e edição desordenado.
Exixtem belos momentos da produção onde seus realizdores, Flávia Lacerda e Guel Arraes, fazem uma inteligente amálgama dos temas discutidos por Ariano Suassuna em sua obra e realidades brasileiras, como a tentativa de sobrevivência de João Grilo no sudeste do país e o choque de realidade sofrido pelo personagem ao perceber que o Brasil sabe da situação precária do sertanejo nordestino, mas pouco faz para reverter a situação, em uma sequência simbólica dirigida dentro de uma sala de cinema, mostrando a sétima arte como uma verdadeira janela para o que acontece ao redor do mundo. O consumismo e o avanço de novas tecnologias no início da década de 1950, além do coronelismo e até o falso messianismo são temáticas retratadas em O Auto da Compadeida 2, ilustradas sob uma ótica que referencia o teatro em um espetáculo visual que pode soar diferente para os que tem maior afeição pelo primeiro filme, porém para quem entende da concepção visual idealizada por Ariano para as suas obras irá se encantar. O próprio neto do escritor, João Suassuna, explicou que o filme foi totalmente realizado visualizando uma identidade visual inspirada nas artes cênicas, no circo e no movimento Armorial. Portanto, cenários construídos e distorcidos, figurinos extravagantes, coloridos saturados, referências à xilogravura e à literatura de cordel, jogos de iluminação e sombras entre cenas, são artifícios visuais presentes e abundantes no filme, que também optou ser gravado inteiramente em estúdio para ampliar a liberdade do design de produção. A fotografia também escolhe tons alaranjados que remetem ao sertão nordestino, fazendo um uso sábio de seu jogo de iluminação. Infelizmente, a trilha sonora nãon contou com a assinatura e a excelência do grupo Sa Grama, mas conta com breves trechos do clássico tema de João Grilo, “Presepada”.
Munido de um elenco bem preparado e altamente carismático, O Auto da Compadecida 2 não deixa de lado o inevitável fator nostalgia ao trazer de volta para as telonas João Grilo e Chicó, personagens que, de acordo com o próprio intérprete deste primeiro, Matheus Nachtergaele, já “moram no coração do povo brasileiro”. Tanto Nachtergaele quanto Selton Mello superam a questão do tempo e demonstram agilidade e uma total familiaridade com os seus respectivos personagens, exalando simpatia e um entusiasmo sincero. O mesmo podemos perceber com Virgínia Cavendish e Enrique Diaz (como o ex-cangaceiro Joaquim Brejeiro). Os novos nomes do elenco, apesar de terem seus personagens parcialmente subutilizados, também demonstram conforto e entusimasmo na suas respectivas caracterizações. Luis Miranda, que vive o malandro carioca Antônio do Amor, Taís Araújo, Eduardo Sterblitch, Humberto Martins e Fabiula Nascimento parecem estar envolvidos na produção desde a minissérie de 1999, de tanto demonstrarem familiaridade para seus papéis.
Corajoso por dar continuidade a uma obra tão benquista pelo público, porém não ousada no quesito inventividade, O Auto da Compadecida 2 cumpre o prometido: ser um abraço caloroso dado em um reencontro entre amigos que há muito não víamos. Talvez, não ter saído de uma zona de conforto foi essencial para gerar uma obra tão aconchegante, divertida e simples, que carrega um grande significado em sua narrativa teatral. Se essa é a verdadeira fórmula para uma sequência de sucesso, isto é, não se preocupar demais com novidades e ser fiel ao que já foi realizado (a ponto do próprio filme brincar com a situação soltando um “Já vi esse filme antes”), não sei. Só sei que foi assim.