qua, 23 julho 2025

Crítica | A Melhor Mãe do Mundo

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Vocês estão prestes a ler um dos textos mais difíceis da minha — ainda modesta — trajetória como crítico de cinema. Um texto que carrega o peso de uma obra que não apenas provoca reflexões profundas, mas que também me desloca do lugar confortável de quem observa e escreve. A Melhor Mãe do Mundo é um filme que exige enfrentamento. É difícil justamente porque me interpela enquanto cidadão inserido em uma sociedade atravessada por desigualdades históricas, estruturais e naturalizadas. Mas também me desafia enquanto crítico, enquanto alguém que trabalha com imagens, com linguagem, com o exercício constante da empatia através do olhar cinematográfico.

A obra me coloca diante de mim mesmo — diante dos meus privilégios. E, ainda que eu me reconheça como um jovem de classe baixa, enfrentando obstáculos cotidianos, não posso ignorar o fato de que sou um homem branco, com um emprego estável, acolhido por estruturas sociais que, muitas vezes de forma invisível, me favorecem. Perceber que muitas vezes reclamo de barriga cheia não é fácil, mas é necessário — e o filme escancara, com rigor e crueza, o contraste entre o que eu vivo e o que muitos sequer têm o direito de sonhar.

A Melhor Mãe do Mundo apresenta uma protagonista cuja existência é marcada pela luta em sua forma mais crua: catadora de resíduos recicláveis, vítima de violência doméstica, presa a um ciclo de abandono, tentando proteger a si mesma e aos filhos dentro de um sistema que parece existir apenas para esmagá-la. A realidade que se impõe é brutal — e nos força a perguntar, com incômodo e urgência: quantas Gals existem no Brasil? Quantas mulheres vivem à margem, contando moedas para garantir a próxima refeição? Quantas sobrevivem sob o peso da invisibilidade, em um país que insiste em naturalizar o sofrimento como parte da rotina? Refletir sobre isso a partir de um filme é um dos gestos mais potentes que o cinema pode provocar. 

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A personagem Gal, em A Melhor Mãe do Mundo, inevitavelmente me remete a Guido, de A Vida é Bela. Ambos vivem realidades que beiram o colapso — cenários de dor, miséria e opressão — mas encontram, na relação com os filhos, um motivo para filtrar o horror. Tanto Guido quanto Gal se tornam escudos emocionais: criam mundos paralelos onde a fantasia suaviza a brutalidade, onde o lúdico serve como armadura contra a crueldade do real. Para Giosué, o campo de concentração torna-se uma grande aventura de férias. Para Rihanna e Benin, as noites dormindo nas calçadas transformam-se em acampamentos, em brincadeiras noturnas, em histórias inventadas para proteger o olhar infantil da tragédia.

A Melhor Mãe do Mundo não se limita a uma denúncia social — embora também o seja, com força — sobre a realidade de tantas pessoas em situação de rua, nem se restringe a um filme sobre violência doméstica ou misoginia. O filme se eleva sobretudo como um retrato profundo da maternidade. Uma maternidade vivida no limite, onde o amor não é apenas afeto, mas estratégia, resistência, sacrifício. Gal é uma mulher que carrega, “a força de mil elefantes” para proteger seus filhos. Uma mulher que recorre à imaginação como forma de aliviar a dor, não a sua, mas a deles.

A direção de Anna Muylaert constrói essa relação de maneira primorosa, ancorando-se numa câmera sempre sensível, que observa de perto. Uma câmera que se aproxima dos corpos, dos gestos, das respirações entrecortadas. Que capta o suor escorrendo a cada esforço de Gal, o brilho ingênuo dos sorrisos infantis, a crueldade silenciosa no olhar dos que se aproveitam da vulnerabilidade. Há uma ternura evidente na forma como Muylaert filma — mas também uma fúria latente diante de tanta injustiça. Essa combinação entre intimismo e indignação faz do filme um poderoso manifesto, onde a maternidade emerge como potência política e poética.

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Mas é justamente aqui que Anna Muylaert mais me provoca. Porque, ao passo que muitos elementos funcionam com precisão e potência, outros tantos resvalam em um certo esvaziamento estético e narrativo, como se estivessem a serviço apenas do choque pelo choque. Há uma linha tênue entre o provocativo e o apelativo, e em alguns momentos sinto que o filme a ultrapassa, deixando para trás a delicadeza e contundência que caracterizam o olhar da cineasta, trocando-as por uma construção visual excessiva, que busca desconcertar sem oferecer real elaboração.

Nesse ponto, a obra me remete a Milagre na Cela 7, principalmente na escolha por uma câmera intensificada, quase sufocante, que se ancora em um melodrama de superfície — um melodrama que, ao invés de aprofundar as figuras que captura, parece apenas querer desestabilizar o espectador a qualquer custo. Há cenas em que não há sentido senão o desconforto. E é justamente aqui que meu conflito se instala: trata-se de um vazio formal e narrativo ou, ao contrário, um desconforto milimetricamente orquestrado para desestabilizar qualquer expectativa de ternura?

Eu não sei. E talvez o filme não queira que eu saiba. O que posso afirmar é que o sentimento que me atravessa não é bom. Como espectador, não cabe a mim dizer como uma autora deve construir sua narrativa ou seu mundo. Mas, ao assistir a este mundo, não consigo acolhê-lo com a mesma comoção que sei que ele gostaria de me provocar. Reconheço os méritos — especialmente nos momentos de maternidade, quando a câmera de Muylaert volta a ser íntima, honesta, sensível. Ainda assim, há algo que me escapa, algo que me soa vão. Como se, em meio a tantas camadas de intenção, faltasse um centro. Que centro seria esse? Honestamente, eu não sei. Existe certo e errado na arte? Também não sei. Talvez essas sejam perguntas para as quais jamais teremos respostas objetivas — e tudo bem. O que sei, com alguma certeza, é que só posso confiar naquilo que sinto. E nesse território, o das emoções, tento ser o mais fiel possível às minhas verdades internas.

A Melhor Mãe do Mundo me deixa em estado de suspensão. Um estado dúbio, desconfortável, por vezes incômodo, e ao mesmo tempo profundamente instigante. Há momentos em que me sinto crítico, tomado por um impulso de rejeição ao que vejo; em outros, sou atravessado por um encantamento silencioso, uma espécie de fascínio bruto, provocativo. O filme me perturba — mas talvez essa seja justamente sua maior força.

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Como pode um filme ser tão denso em suas intenções, e ao mesmo tempo carregar uma sensação de esvaziamento formal? Eu não sei. E talvez essa seja a pergunta mais honesta que um espectador pode fazer diante de uma obra que não se oferece como resposta, mas como abismo. Já disse e repito: é um texto difícil sobre um filme difícil. Mas é nesse terreno ambíguo, instável, entre o incômodo e o encantamento, que A Melhor Mãe do Mundo encontra sua potência — ou ao menos a possibilidade de um debate. Porque, no fim das contas, talvez não seja sobre entender. Talvez seja apenas sobre sentir. E sentir, nesse caso, dói. Mas também desperta.

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    Caique Henry
    Caique Henryhttp://estacaonerd.com
    Entre viagens pelas galáxias com um mochileiro, aventuras nas vilas da Terra Média e meditações em busca da Força, encontrei minha verdadeira paixão: a arte. Sou um apaixonado por escrever, sempre pronto para compartilhar minhas opiniões sobre filmes e músicas. Minha devoção? O cinema de gênero e o rock/heavy metal, onde me perco e me reencontro a cada nova obra. Aqui, busco ir além da análise, celebrando o impacto que essas expressões têm na nossa percepção e nas nossas emoções. E-mail para contato: [email protected]
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