seg, 23 dezembro 2024

Crítica | A Primeira Profecia

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Até que ponto referências cinematográficas são genuínas inspirações e não meramente imitações? Tomemos como exemplo o filme A Profecia (1976), dirigido por Richard Donner, que claramente foi influenciado pelo sucesso de O Exorcista (1973), de William Friedkin. O elemento do mal à espreita, manifestado através da iluminação e da profundidade de campo, está presente em ambos os filmes, onde a presença do mal se insinua na ausência física dele. É nos olhares dos personagens ou em sutis movimentos de câmera que essa presença se materializa e provoca arrepios. Portanto, é inevitável, no meio cinematográfico, que cineastas se inspirem em ideias de projetos que se tornaram referenciais em termos estéticos. Alguns conseguem captar essa essência com êxito, como os filmes de Ti West, enquanto outros podem usar referências meramente como um artifício para reforçar sua própria habilidade, demonstrando apenas competência básica, algo que se espera de qualquer cineasta minimamente versado no campo.

No entanto, quando se pretende construir uma história situada temporalmente antes dos eventos de um clássico como A Profecia, o projeto se torna intrinsecamente arriscado. Na época, Donner realizou um filme onde a atmosfera era mais amedrontadora que os chamados jumpscares, incorporando também referências estéticas do giallo italiano, um subgênero conhecido por sua estilização visual, uso criativo da fotografia e trilha sonora, além de suas cenas de violência gráfica e sexual., com Mario Bava e Dario Argento1 [1] sendo diretores proeminentes nesse subgênero. Algumas mortes no filme de 1976, por exemplo, são marcantes pela forma como são apresentadas na narrativa e pela abordagem do diretor. O uso do sangue é parte desse processo, algo que até mesmo os filmes de horror mais recentes parecem hesitar em utilizar, resultando em estéticas estéreis e pouco inventivas. Os enredos são previsíveis, os sustos são esperados e tudo se torna uma sucessão de situações que não causam terror genuíno.

Arkasha Stevenson e seu A Primeira Profecia parecem compreender tanto a linguagem cinematográfica e o uso de referências quanto as nuances do horror contemporâneo. O filme acompanha Margaret (Nell Tiger Free), uma jovem noviça americana enviada a Roma para servir à Igreja Católica. Durante sua estadia, ela descobre uma conspiração sinistra na escola de freiras onde vive, cujo objetivo é trazer à tona o mal encarnado, o chamado anticristo. Embora o filme explore superficialmente a história do nascimento de Damien, ele também aborda um tema mais profundo: o feminino. Stevenson levanta questões importantes sobre a representação das mulheres nas escrituras bíblicas e, mais ainda, sobre como sua independência e vontade são interpretadas pelo patriarcado eclesiástico. Se parte da instituição religiosa se baseia em estupros e violência em nome de Deus, isso não seria, por si só, uma encarnação do mal? Os primeiros minutos do filme, com inserções pontuais de um rosto feminino em sofrimento, são poderosos nesse discurso.

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Seguindo essa linha, duas referências centrais do filme são habilmente exploradas: a primeira, e mais evidente, é O Bebê de Rosemary (1968). Um clássico que ressoa até hoje quando se fala de filmes de terror, sua influência é perceptível tanto visualmente quanto narrativamente em A Primeira Profecia, onde Stevenson revisita a temática da violência contra a mulher. Um determinado plano, no terço final do filme – evitarei detalhes para evitar spoilers – focaliza o corpo feminino e, com um movimento lento de câmera, passeia até encontrar diversos objetos cortantes, tornando-se um ponto de virada crucial na narrativa. Além disso, a referência direta a Possessão (1981), um dos filmes mais marcantes do cinema europeu dirigido por Andrzej Żuławski, fortalece ainda mais a base visual do filme. Logo, A Primeira Profecia é a jornada de “una farfalla che deve volare”, ou seja, de uma borboleta que deseja voar. Em um momento em que o cinema contemporâneo está contando histórias de mulheres tentando escapar do jugo patriarcal, o filme de Arkasha Stevenson se destaca como uma adição bem executada a essa narrativa.

No entanto, como mencionado anteriormente, qualquer cineasta pode fazer referências por referências. O que diferencia este filme é a maneira como essas referências são integradas organicamente à sua narrativa e temática, enriquecendo a experiência do espectador enquanto o provoca. Essa habilidade tira do filme a ideia de ser apenas mais uma entrada no gênero, desafiando a timidez que o cinema atual tem em relação ao sangrento e ao desconfortável, proporcionando momentos impactantes em que vísceras e sangue se tornam parte integrante da trama. No entanto, e é importante destacar seus pontos francos, o filme ainda parece preso aos preceitos dos jumpscares, com alguns momentos em que os sustos parecem desconectados da encenação, e um plot twist que, para o espectador mais atento, soa mais como um truque que um desenvolvimento orgânico. Ainda assim, A Primeira Profecia consegue partir de uma base visual para fazer algo que foge do que é comumente realizado atualmente e, por isso, entre outras coisas, merece destaque.


  1. Argento é também uma fonte para Arkasha Stevenson em alguns momentos, principalmente Suspiria (1977). Quando uma das linhas narrativas do filme começa a ser desvendada e Margareth descobre uma chave e uma passagem secreta, é inevitável não lembrar de Susan Bannion (Jessica Harper) no clássico. ↩︎
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