qui, 20 novembro 2025

Crítica | A Queda do Céu

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Há filmes que observam o mundo. E há filmes que escutam. A Queda do Céu pertence a essa segunda linhagem – a dos que se debruçam sobre um silêncio ancestral, que não é ausência, mas presença. Um cinema que não descreve: convoca. Que não exibe: reverbera. Desde os primeiros planos, sentimos que não estamos diante de um documentário que deseja apenas registrar um rito, mas de uma obra que pretende, em sua própria forma, participar do fluxo espiritual dos Yanomami, como se cada corte fosse um gesto ritualístico e cada enquadramento uma respiração.

O Reahu – ritual fúnebre que guia a narrativa – aparece menos como um evento e mais como uma coreografia existencial. A câmera, em sua reverência quase litúrgica, não tenta conquistar o espaço; ela se deixa atravessar por ele. Os movimentos dos corpos, das pinturas, dos cantos, dos sopros que circulam pela comunidade Watorikɨ são filmados como se o próprio cinema estivesse tentando aprender a morrer e renascer. Nada é espetacularizado: o filme abraça o tempo lento, o tempo da natureza, o tempo das despedidas que não urgem, mas se expandem.

E é nessa temporalidade dilatada que o luto se converte em política. Porque A Queda do Céu sabe que toda imagem ancestral, quando posta diante de um país que insiste em transformar a floresta em ferida, se torna automaticamente um ato de enfrentamento. A montagem estabelece esse embate com uma precisão quase xamânica: os relatos de Davi Kopenawa são como flechas lançadas contra um mundo que insiste em se autodestruir. “O povo da mercadoria” não é apenas nomeado – é convocado enquanto fantasma, enquanto força corrosiva que atravessa a história recente do Brasil com a brutalidade do garimpo, da febre, da fome, da xawara.

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O documentário não se fecha no eixo denúncia. Ele o expande. O filme não nos mostra apenas o problema; nos mostra o sonho. E é nesse território do sonho que ele atinge seu estágio mais alto. Os espíritos xapiri, tão presentes na cosmologia Yanomami, não aparecem como abstrações, mas como uma vibração estética que assume a imagem. Há momentos em que o filme parece se desprender do chão, como se a própria lente estivesse tentando imitar o movimento espiralado dos xamãs quando convocam essas entidades luminosas.

Formalmente, o filme encontra potência na contenção. O som, por exemplo, é usado como arma e como afeto: o ranger da mata, a respiração coletiva do ritual, o canto que brota de corpos que já sabem o tamanho daquilo que está sendo perdido. Esse desenho sonoro, integrado a uma fotografia que nunca invade, mas acompanha, cria um estado de atenção que só filmes profundamente éticos conseguem alcançar. Não há exotização, não há fetiche, não há a velha tentação ocidental de transformar o outro em poema vazio. Aqui, o outro fala – e quando fala, o céu racha.
E quando o filme se encerra, é inevitável sentir que não existe ali apenas uma crítica ao garimpo ou à devastação. Há algo muito maior: um convite. Um chamado para sonhar longe, como diz o próprio Kopenawa. Sonhar com mundos possíveis, mundos que não tratem a terra como mercadoria e a espiritualidade como superstição.

A Queda do Céu é cinema como ponte, cinema como xamã, cinema como flecha. É uma obra que devolve ao documentário sua força primeira: a capacidade de escutar os vivos, os mortos e tudo o que vibra entre eles. É daqueles filmes que permanecem conosco como um sopro – frágil, mas inquebrável.

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Caique Henry
Caique Henryhttp://estacaonerd.com
Entre viagens pelas galáxias com um mochileiro, aventuras nas vilas da Terra Média e meditações em busca da Força, encontrei minha verdadeira paixão: a arte. Sou um apaixonado por escrever, sempre pronto para compartilhar minhas opiniões sobre filmes e músicas. Minha devoção? O cinema de gênero e o rock/heavy metal, onde me perco e me reencontro a cada nova obra. Aqui, busco ir além da análise, celebrando o impacto que essas expressões têm na nossa percepção e nas nossas emoções. E-mail para contato: [email protected]
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