sáb, 21 dezembro 2024

Crítica | A Sociedade da Neve

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Em outubro 1972, um voo vindo do Uruguai colide com uma geleira nos Andes. Apenas 29 dos seus 45 passageiros sobreviveram ao acidente. A Sociedade da Neve (La Sociedad de la Nieve), novo filme de J.A. Bayona (O Impossível), mostra o grupo de sobreviventes da tragédia presos em um dos ambientes mais hostis do planeta, sendo forçados a lutar pelas suas vidas.

Na mídia desde o desaparecimento da aeronave Força Aérea uruguaia que transportava o time de rugby Old Christiane, em outubro de 1972, e pipocando nos meios de comunicação desde dezembro daquele ano, quando ocorreu o considerado milagroso resgate dos 16 sobreviventes, a tragédia dos Andes é incontestavelmente um dos casos mais surpreendentes da história da humanidade. Evito considerar o acontecimento como algo bizarro, em respeito às vítimas e devido a seriedade das situações pelas quais os demais passageiros da nave passaram. Chocante, triste e agoniante devem ser as palavras certas que melhor caracterizam o ocorrido, o que, aparentemente, também foi levado em consideração pelo cineasta J.A. Bayona que, em A Sociedade da Neve (La Sociedad de la Nieve), revisita a famosa tragédia evitando espetacularizar ou repassar uma imagem de heroísmo de seus personagens reais, apostando em um drama mais humano, sem deixar de ser munido de questionamentos e reflexões a respeito da sobrevivência, com um evidente foco na questão do canibalismo praticado pelos sobreviventes e como isso seria lidado adiante pelo mundo e, principalmente, por eles próprios.

Em 1993, o cineasta Frank Marshall lançou o filme “Vivos” (Alive), produção, até então, considerada como a obra mais conhecida sobre a tragédia dos Andes, o que para muitos sempre foi questionável, já que o longa noventista apela para um heroísmo forçado, acabando por ser artificial e até desrespeitoso, em alguns momentos. Assertivo ao evitar recontar a história de uma maneira resumida que pontuasse somente acontecimentos considerados importantes, o que também aconteceu no filme de Marshall, A Sociedade da Neve parte de uma narrativa compromissada em mostrar o afetado psicológico das vítimas sobreviventes, além da convivência e estratégias para reverter o frio intenso, a fome e os ferimentos ocasionados pela colisão. O longa se difere de produções baseadas em tragédias reais principalmente pelo seu storytelling se desenvolver através da visão de um dos sobreviventes, Numa Turcatti, interpretado pelo intenso e emocionalmente inspirado Enzo Vogrincic, um jovem católico que foi um dos últimos a recorrer ao canibalismo para sobreviver, que veio a sucumbir pouco tempo antes do resgate devido a uma infecção.

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Imagem: Netflix/Reprodução

A ideia da narrativa ser inteiramente baseada na visão de Turcatti começa de maneira questionável, pois há uma certa apreensão sobre a maneira como a história seria apresentada ou interpretada. Não era certeza se o roteiro (assinado por Bayona, Bernat Vilaplana, Jaime Marques e Nicolás Casariego) estaria utilizando uma interpretação religiosa para explicar ou até mesmo questionar as ações do grupo de sobreviventes durante o confinamento na montanha. Porém, graças a diálogos bem escritos e aplicados na trama, e a condução do longa que consegue equilibrar momentos de dor, reflexão e reação, A Sociedade da Neve consegue se encontrar como um reflexo de como a fé, independente de religiões ou ideologias, se mantém presente mesmo que de maneira implícita em situações de crise. Mesmo tardando para encontrar uma razão para os questionamentos anteriores de Numa, o longa entrega, através de uma bela sequência de falas, o que arquitetou desde o primeiro ato de maneira sensível, humana e comovente, sem parecer superficial ou piegas, nem mesmo procurando brilhar através de luzes artificiais nesta temporada de premiações.

Existe em A Sociedade da Neve um evidente respeito por todas as vítimas da tragédia, chegando a enumerar, com nomes e idades, cada pessoa que perdeu a vida na situação. O longa também valoriza cada sobrevivente, reconstruído suas lutas e dramas, sem o intuito de transformá-los em heróis ou seres indestrutíveis, agindo de forma verdadeira e visceral. A condução de um elenco numeroso é gloriosa e arranja oportunidades para atribuir personalidades distintas ao grupo, além de boas interações e até certos alívios descontraídos. Na pele de Roberto Canessa, Nando Parrado e Javier Methol, os sobreviventes que, além de Numa Turcatti, possuem mais tempo de tela, estão os ótimos Agustín Pardella, Matías Recalt e Esteban Bigliardi, respectivamente.

A sensação de confinamento, que mescla uma incessante agonia e profunda tristeza pela situação e pela incerteza do que virá a seguir, é posta em prática com a exímia habilidade do diretor J.A. Bayona em conduzir um drama e atribuir a tal melancolia um suspense e ate mesmo um body horror que conversam diretamente com a trama e ainda assumem a função de complementar a obra, com artifícios essenciais para gerar sentimentos múltiplos em quem se permite embarcar na história. A impecável direção está muito bem acompanhada de dois grandes recursos que são a trilha sonora melancólica do maestro Michael Giacchino, que ostenta de instrumentos de corda e ritmos típicos de países como Chile e Argentina, e a direção de fotografia de Pedro Luque. Esta última utiliza com responsabilidade as tonalidades mais claras provenientes da neve, sem prejudicar a imagem que está sendo vista em tela com brilhos e saturação em demasia, além de fazer uma escolha assertiva de seus enquadramentos, valorizando a transformação corporal dos personagens e suas expressões que dispõem de uma fagulha de esperança em olhares e sorrisos discretos, com planos abertos que valorizam a ambientação e mostram o quão o grupo estava cercado pelo gelo.

Imagem: Netflix/Reprodução

Outro grande destaque vai para a equipe de efeitos visuais, que utilizam um CGI de primeira linha para recriar o desastre, além de desenvolver efeitos práticos nas cenas internas do avião, apostando no realismo nu e cru da situação. A qualidade técnica dos efeitos, assim como da maquiagem e cabelo, é tamanha que deve mexer com o estômago do público mais sensível.

Verdadeiro na medida certa, A Sociedade da Neve dribla com maestria o espetáculo e a epopeia, se caracterizando melhor como uma tragédia munida de reflexões pertinentes e sinceras, utilizando a fé, própria ou religiosa, para explicar os acontecimentos mais tristes, desafiadores e intensos da vida. Existe aqui não só uma bela homenagem às vítimas do “Milagre dos Andes”, mas também uma das melhores e mais responsáveis produções a respeito de um acontecimento que abalou a humanidade.

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