Aos Pedaços, filme de 2020, que chegará ao circuito comercial quase 5 anos após sua realização e estreia em festivais, gira em torno do protagonista Eurico Cruz, um homem que tem duas esposas e duas vidas, que desperta de um pesadelo e descobre que um bilhete, assinado por um A, anuncia sua morte. Acontece que as duas mulheres da sua vida se chamam Ana e Anna, o que o faz procurar incansavelmente quem seria a autora, ou autor, de seu suposto assassinato.
O cinema kafkiano, cujo o nome autoexplicativo é proveniente das obras labirínticas de Franz Kafka (O Processo, A Metamorfose) – na qual o indivíduo se encontra em uma situação burocrática e/ou angustiante, conflituosa, repleta de rodeios e processos que colocam em xeque a sua própria existência – está bem mais presente em nosso cotidiano, tanto na sua forma quanto no seu conteúdo, do que imaginamos. Obras clássicas, como Laranja Mecânica de Kubrick, ou Depois das Horas, de Scorsese, adotam o conflito burocrático enfrentado pelo protagonista a fim de gerar sua deterioração e movimentar a história com questionamentos capazes de fazer o público levar para debates durante um considerável tempo. Ruy Guerra, renomado cineasta e poeta teuto-brasileiro, tenta se aproximar de uma linguagem kafkiana para desenvolver a narrativa situacional de Aos Pedaços, drama que abraça elementos da fantasia e do horror para criar o conflito que aflige seu protagonista Eurico Cruz (Emílio de Mello), mas acaba se perdendo em meio aos seus quase injustificáveis excessos.
As dicotomias presentes desde o argumento inicial do longa-metragem alimentam a ideia de que Aos Pedaços seria um interessante estudo sobre paralelos e personagens, tendo em cena dois extremos, duas formas de vida, duas mulheres e duas maneiras de enfrentar a possibilidade de um trágico destino, que é ouvir o subconsciente ou mergulhar de vez na incerteza. Aqui, Ruy Guerra apresenta essas possibilidades, de fato curiosas e que sustentam a trama, sob escolhas formais, no entanto, confusas e que beiram a monotonia, ousando utilizar de uma estética de peça teatral para ilustrar as situações, o que, apesar de promover jogos de cena e enquadramentos verdadeiramente belos – ainda mais pelo uso de uma fotografia em preto e branco que ostenta de uma digna iluminação teatral, com exímios contrastes entre luz e sombra -, torna-se cansativo no desenrolar da narrativa, alimentando a ideia de que a adesão à estética que se vê em cena é uma mera desculpa para atribuir um falso tom “artístico” e “diferenciado” para a produção. Ou seja, é uma utilização desenfreado do belo a troco de um paupérrimo resultado.
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Assinado pelo próprio Ruy Guerra, em parceria com Luciana Mazzotti, o roteiro de Aos Pedaços parte de suas referências kafkianas, porém desenvolve um texto massivo e de difícil interpretação que, ora mira em uma oratória voltada para o renomado autor tcheco, ora desvia sua precisão para acertar em questões existencialistas, a ponto de tecer críticas e fazer alusões a escolhas, dualidades e até religiões. Neste último ponto, temos como principal influenciador o personagem enigmático vivido com excelência por Julio Adrião, que ora atua como um conselheiro psicológico e espitural do protagonista Eurico, ora serve como um paralelo entre a vida e a morte, a crença e a descrença, além de várias outras dicotomias que deixam a história de Aos Pedaços excessiva, fazendo-a cair na própria armadilha de uma eloquêndia que beira a exaustão.
Perdido na própria verborragia e utiliando de recursos ténicos, alinhados às escolhas de forma de fato chamativas e que nos remetem a um exímio trabalho de condução de artistas e elementos em cena, para mascarar sua confusão narrativa, Aos Pedaços, no entanto, de fato se diferencia por contar com tantas temáticas em apenas 90 minutos de projeção. Caso não houvesse um prolongamento de suas tramas, ou uma certa moderação na palavrosidade, o filme teria funcionado melhor como um curta-metragem, além de manter seu clímax sem se perder em meio a tantos diálogos efadonhos.
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Existe aqui um caso gratificante de elenco que consegue entregar tudo, e mais além, do que lhe é proposto. Simone Spoladore (Ana) e Christiana Ubach (Anna) esbanjam emoção e nuances no desenvolvimento de suas personagens que, ao mesmo que são completas opostas, muito têm em comum, ao compartilharem de dores e sentimentos semelhantes. Emílio de Mello e Julio Adrião convencem em suas perfomaces teatrais, além de atribuírem linguagem corporal e expressões diferenciadas em seus longos monólogos, que são compensados pelas respectivas interpretações dos artistas. Também é importante destacar a narração de Arnaldo Antunes, cujo a voz grave e pacífica intensifica um ar de mistério e melancolia proposto pela trama.
É uma pena que Aos Pedaços tenha se anunciado como uma produção repleta de reflexões a serem questionadas perante escolhas formais tão belas, mas acaba se desdobrando como uma mera ilustração, carente de ritmo, sendo por vezes caricata e cansativa, de um “filme de arte”.