Anteriormente, costumávamos nos engajar em brincadeiras nas redes sociais, rotulando os filmes da Marvel como “filmes de boneco”, muitas vezes associando tal crítica à sua extensiva utilização de CGI. Contudo, essa piada “evoluiu” para uma analogia robusta em relação à franquia, uma vez que a cada lançamento emerge uma sensação persistente de repetição, assemelhando-se à continuidade de uma linha de brinquedos que obteve êxito uma década atrás com uma única coleção. A Marvel, aparentemente, decifrou um algoritmo de sucesso, mas que, por ironia, não se traduz plenamente em experiências cinematográficas substanciais. Apesar de seus esforços para envolver talentos consolidados, como Sam Raimi, ou emergentes, como Nia DaCosta, percebe-se uma relutância em conceder a liberdade necessária para que o autorismo cinematográfico floresça. Embora os filmes da Marvel possam ser populares e bem-sucedidos em termos de bilheteria, não parece suficiente para desvincular a franquia da percepção de fórmulas e receitas.
A preocupação persiste quanto à genuinidade artística dentro do universo Marvel, questionando se a fórmula comercialmente eficaz adotada pela franquia permite espaço suficiente para a expressão artística verdadeira e a inovação narrativa. Nesse contexto, torna-se relevante refletir sobre a tensão entre o sucesso comercial e a criação cinematográfica autêntica, especialmente quando se busca equilibrar a continuidade da marca com a necessidade de surpreender e encantar o público. Além disso, a contradição entre a busca por diretores de renome e a limitação percebida de sua liberdade criativa levanta questões sobre a verdadeira natureza da colaboração artística no contexto da Marvel. Seria essa uma parceria colaborativa, onde a visão do diretor é respeitada e integrada, ou uma relação mais hierárquica, onde a visão artística é subjugada às demandas do universo estabelecido pela franquia? Essa reflexão não busca diminuir a relevância e o impacto cultural dos filmes da Marvel, mas sim estimular uma análise crítica sobre a interseção entre o sucesso comercial e a integridade artística, um diálogo fundamental para o desenvolvimento contínuo do próprio cinema contemporâneo.
Nia DaCosta, com apenas dois filmes, me parece alguém que sabe muito bem que “tipo” de cinema que fazer, alguém que procura estabelecer seu estilo. Ela busca trazer abordagens narrativas centradas em personagens complexos e temas sociais interessantes. Embora seja uma tarefa árdua definir precisamente seu estilo, DaCosta parece possuir uma sensibilidade única para explorar a condição humana por meio de suas narrativas. Não é por acaso que em “As Marvels”, ela apresenta situações interessantes, destacando-se pela forma como conduz as protagonistas na tela. Carol Danvers, Kamala Khan e Monica Rambeau, são construídas em volta de uma dinâmica envolvente. Entretanto, aflora a percepção de que DaCosta, talvez, tenha sido cerceada, moldada por influências externas que limitam sua expressão artística. O resultado parece ecoar a fórmula padronizada de tantos outros filmes da mesma empresa: uma abordagem genérica, árida e algoritmizada, construída em torno da identidade preexistente da Marvel ou daquilo que a empresa aspira ser.
Quem, afinal, teria o discernimento para julgar uma promissora autora preta que almeja conquistar seu espaço na indústria cultural? Afinal, se não ela, alguém mais o faria. Muitos artistas encontram-se compelidos a interromper suas produções independentes, renunciando a seus estilos. Como sugere o professor Philippe Leão, há a necessidade de “aparar as pontas” para conformar o estilo em prol dos padrões da indústria, visando garantir um lugar nesse cenário competitivo. Pois, independentemente das convicções pessoais, é inegável que a venda de sua arte requer uma estratégia alinhada aos gostos vigentes na indústria da cultura. Nesse contexto, Nia DaCosta se encontra no cenário do “pós-pós-modernismo” cinematográfico, caracterizado por um cinema algorítmico mais preocupado em uniformizar suas produções. Este fenômeno, aliado ao excesso de estímulos, contribui para que as narrativas se percam em uma espécie de automatização, uma padronização orientada para atender às expectativas do mercado (ou criar suas próprias demandas). Em meio a essa dinâmica, a busca por um equilíbrio entre a autenticidade artística e as demandas comerciais torna-se um desafio complexo, onde a capacidade de navegar por essa dicotomia pode definir o sucesso de uma obra e de seus criadores no panorama cinematográfico contemporâneo.
Assim, “The Marvels” nunca se configura como algo autônomo, tampouco como um espaço definido para sua existência, uma vez que constantemente surge algo subsequente ou para o futuro do UCM. A narrativa parece incessantemente depender de elementos adicionais, se apoiando de maneira contínua no fanservice, conferindo à obra a impressão de falta de auto-suficiência. De fato, essa ausência torna-se evidente, gerando um conflito no trabalho de Nia Dacosta, que parece indeciso quanto à sua identidade. Apesar de apresentar momentos notáveis entre as três protagonistas, o filme não consegue alcançar a frontalidade almejada. ” As Marvels” não se diferencia das últimas produções do mesmo gênero, deixando o espectador imerso em uma experiência que falha em estabelecer conexões significativas.