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    Crítica | Assassino por Acaso

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    Antes de iniciar qualquer discussão sobre a narrativa de “Assassino por Acaso” (no original, “Hit Man”), é interessante destacar um momento crucial apresentado nos primeiros minutos do filme. Enquanto Gary (Glen Powell) narra sua dupla jornada como professor de filosofia e falso assassino de aluguel, ele destaca que essa profissão é uma criação do cinema, uma ideia que se tornou verossímil devido à repetição contínua desses papéis nas telas. Assim, o “assassino de aluguel” emerge como um conceito, intimamente ligado a uma noção de performance. É com base nessa premissa que o novo filme de Richard Linklater se desenvolve. O protagonista, interpretado de maneira brilhante por Powell, é alguém cuja vida, a partir de um certo ponto, depende inteiramente de seu desempenho diante de uma abstração—o ideário de uma profissão que não existe. Linklater utiliza esse conceito para explorar temas como identidade e a linha entre realidade e representação.

    Para um melhor entendimento dessas questões, vamos observar a sinopse do filme. “Assassino por Acaso” é parcialmente inspirado em uma história real e segue Gary Johnson, que para seus clientes, se apresenta como um assassino de aluguel comum, mas, na verdade, trabalha para a polícia. Como parte de seu trabalho, ele investiga a vida daqueles que o contratam para eliminar outra pessoa. Gary sempre seguiu à risca o protocolo do seu trabalho, até o dia em que conhece Maddy (Adria Arjona), que tenta fugir de seu marido abusivo. Fica claro que a abordagem bem-humorada do filme é um de seus trunfos, explorando as possibilidades geradas pelas trocas de personalidades. No entanto, o filme consegue sofisticar essa premissa com uma habilidade que apenas diretores experientes são capazes de alcançar. 

    Em outras palavras, o que poderia se desenrolar como uma narrativa baseada apenas em um sequenciamento esquemático para gerar momentos engraçados, é transformado por Linklater através do uso inteligente da linguagem cinematográfica para criar seu humor. Um exemplo disso ocorre quando Gary precisa interpretar um assassino de aluguel pela primeira vez. Nesse momento, Linklater muda sutilmente o enquadramento da câmera, fechando o plano, enquanto Powell ajusta sua performance, variando habilmente entre suas diferentes personas. 

    A palavra “performance” torna-se, portanto, um elemento-chave para o sucesso do filme em sua proposta. Linklater não se contenta em apenas gerar situações cômicas; ele utiliza a atuação de Powell e a mise-en-scène para adicionar complexidade à narrativa. A capacidade de Powell de transitar entre suas diversas facetas não só enriquece seu personagem, mas também sublinha a habilidade de Linklater em criar uma comédia que é tanto intelectualmente estimulante quanto emocionalmente ressonante.

    A partir do momento em que o cineasta adota a ideia de que toda a estrutura do filme gira em torno de uma grande encenação, a variação entre o policial e a comédia se torna orgânica. Mas isso se limita apenas à performance de Powell ou à direção de Linklater, pois Arjona também desempenha um papel crucial nessa mesma noção de ambiguidade. Ela aparece como alguém que contrata Gary para matar seu marido, e sua presença fílmica navega entre dois extremos, representando paixão e perigo em igual medida. Essa dualidade torna suas interações com uma das personas de Gary, Ron, ainda mais intrigantes.

    Uma cena-chave para o filme é o momento em que as suspeitas entre os dois personagens chegam à polícia, forçando ambos a representar papéis, tanto para si mesmos quanto para os outros. Em outras palavras, quando Gary interpreta Ron e Maddy modula sua voz para transmitir uma possível ideia de inocência, Linklater reúne todos os elementos de sua linguagem cinematográfica. Ele provoca o núcleo policial do filme através da comédia, ao mesmo tempo em que brinca com as possibilidades de — e aqui repito a palavra — performance e representação.

    Toda a estrutura filosófica que se constrói em torno do filme não soa, portanto, como pedantismo ou como uma tentativa forçada de aprofundar uma narrativa que poderia parecer superficial. Muito pelo contrário, há uma conversa muito bem articulada entre o humano e sua capacidade de adaptação e modificação diante de situações que fogem da zona de conforto (é quase impossível não criar um personagem diante de alguma situação complexa) e é precisamente esse jogo de adaptação que torna a história tão envolvente.

    Numa época em que o cinema norte-americano tem se mostrado cada vez mais recatado, evitando qualquer ato amoroso que vá além de um beijo breve, é um alívio ver dois atores — e dois personagens — apaixonados entre si e pela narrativa em que estão envolvidos. Assim, além de todos os pontos positivos já mencionados, é ainda mais formidável acompanhar um filme que não tem vergonha de abraçar sua própria essência cinematográfica como base, gerando comédia a partir disso sem precisar recorrer constantemente a “piscadelas espertinhas”. “Assassino por Acaso” é extremamente bem-sucedido em tudo a que se propõe, justamente por unir suas ambições sem se tornar excessivamente autossatisfeito.

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