Biografias cinematográficas são, por natureza, um desafio criativo. Retratar a vida de uma figura real gera um conflito formal entre fidelidade histórica, interpretações artísticas e o inevitável peso da subjetividade. Contudo, quando se trata de figuras complexas como Amy Winehouse, a tarefa se torna ainda mais delicada. Não basta apenas contar a história de sua vida; é necessário compreender e traduzir sua essência, sua humanidade e o impacto de sua arte. Uma das questões centrais que me fazem desconfiar de biografias padronizadas é a tendência de simplificar histórias e reduzir personalidades multifacetadas a estereótipos.
O cinema, claro, possui a liberdade de reinterpretar, dramatizar e até mesmo fantasiar eventos reais, mas essa liberdade traz uma responsabilidade — ou, pelo menos, gosto de pensar que sim. Obras como Spencer, que se concentra em um período específico da vida da princesa Diana, ou Rocketman, que mergulha na mente criativa de Elton John por meio de uma narrativa musical e fantasiosa, são exemplos de abordagens bem-sucedidas. Esses filmes não tentam abarcar tudo ou oferecer um retrato “definitivo”. Pelo contrário, assumem suas escolhas subjetivas e utilizam a linguagem cinematográfica para captar algo mais profundo: a essência de seus protagonistas.
Em contraste, Back to Black tenta englobar a vida de Amy Winehouse de maneira tradicional, mas acaba sendo vítima de sua própria falta de visão. Como bem observou meu colega Diego Quaglia, o filme é “cafona no pior sentido da palavra”. Essa cafonice não reside apenas em um mau gosto estético, mas em uma superficialidade narrativa que beira o desrespeito. A obra falha em construir uma imagem convincente de Amy — apesar da potente atuação de Marisa Abela —, transformando-a em um amontoado de clichês que orbitam ao redor da ideia de uma “mulher problemática”. O filme parece mais interessado em perpetuar a imagem da artista atormentada do que em explorar a complexidade de sua personalidade ou a profundidade de sua música.
Um dos maiores problemas do filme é sua incapacidade de se sustentar como obra cinematográfica. A montagem é fragmentada, desarticulada e, em muitos momentos, francamente constrangedora. As cenas parecem jogadas na tela sem uma lógica clara, como se o filme estivesse desesperado para cobrir todos os eventos marcantes da vida de Amy, mas sem saber como conectá-los de forma emocionante ou, pelo menos, interessante. O resultado é uma narrativa que se arrasta entre momentos dramáticos mal construídos, diálogos superficiais e uma decupagem que falha em criar qualquer intimidade entre o espectador e a protagonista.
Mesmo nos momentos em que a câmera tenta se aproximar de Amy (e de suas relações), a sensação é de distância. A obra não demonstra nenhum interesse genuíno em compreendê-la como pessoa. Pelo contrário, há uma insistência em recortar e repetir os aspectos mais sensacionalistas de sua trajetória, transformando-a em uma figura quase bidimensional. Amy, aqui, não é apresentada como a artista genial que revolucionou o jazz contemporâneo e conquistou uma geração com sua autenticidade crua. Ela é, antes, reduzida a uma sequência de problemas pessoais.
Eu até consigo entender que a diretora tenta trazer uma versão mais humana de Amy, com problemas, sonhos, desejos e frustrações. Tendo uma vida conturbada, era inevitável que ela desse voz a esses acontecimentos. Mas tudo no cinema depende de como o autor decide contar a história: a câmera é uma caneta e a imagem, o papel. Diante disso, o filme me parece mais preocupado em explorar o espetáculo de sua queda do que em celebrar a força de sua arte. Isso é particularmente evidente na forma como a narrativa ignora momentos de sua carreira, e mesmo quando mostra situações importantes, parece diluir o impacto de suas realizações.
Há também um descompasso gritante entre a proposta estética do filme e a personalidade de Amy. Enquanto sua música é rica, complexa e profundamente emocional, Back to Black é visualmente insosso e raso. A direção parece incapaz de capturar a energia vibrante e a vulnerabilidade que coexistiam em Amy. Ao invés disso, o que recebemos é uma sucessão de cenas “desinspiradas”, costuradas por uma montagem que parece apressada e desinteressada pela potência que era Amy Winehouse.