qua, 18 dezembro 2024

Crítica 02 | Barbie

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Uma boneca com um sorriso cativante, curvas impossíveis e seios prontos para jogo pode ser classificado como uma ícone feminista? Essa é uma pergunta que gira no longa da  Greta Gerwig: Barbie, uma fantasia de ação live action sobre a boneca mais famosa do mundo. Por mais de meio século, a Barbie tem sido, alternadamente, celebrada como uma fonte de prazer e brincadeira infantil, e repreendida como um instrumento de normas tóxicas de gênero e ideais consumistas de feminilidade. Se a Barbie tem sido um ponto quente da guerra cultural por tanto tempo quanto está nas prateleiras, é porque a boneca encapsula perfeitamente a mudança de ideias sobre meninas e mulheres: nossas Barbies, nós mesmas, certo? 

Gerwig esculpe um caminho cômico para essa floresta patriarcalista em parte por meio da criação. A barbie é criada pela imaginação das crianças e adultos, em particular, as meninas e mulheres que brincam com a boneca no propósito de trazer algo que reflita com a vida real, uma mudança adequada para um filme que tem a irmandade como ponto de partida.

Esses imaginadores incluem, antes de mais nada, a própria Gerwig. O filme começa com um prelúdio que seria uma paródia inteligente numa  sequência do amanhecer do homem de 2001: Uma Odisseia no Espaço (com meninas, ao invés de homens-macacos), e depois muda para a Terra da Barbie (a barbieland), um país das maravilhas rosa. Lá, Gerwig define a cena e o tom que nossa Barbie protagonista terá (Margot Robbie) – que se autodenomina a Barbie estereotipada – logo flutuando para fora de sua Dreamhouse, como se estivesse sendo levantada por uma mão invisível gigante. É um floreio autoral espirituoso. A marca Mattel se destaca aqui, mas Gerwig, cujo comando de direção é tão fluente que parece ter nascido para o cinema. E saibam, ela está  no controle.

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A Barbieland, como é chamada, é uma realidade alternativa inerentemente hilária, modelada no sonho que a Mattel tem vendido às garotas desde que a boneca foi lançada em 1959. Parece muito com o que vemos em inúmeros comerciais, onde Barbie Dreamhouses, brilhantes inspiram inveja como uma coleção diversificada de bonecas alegres e de mente positiva sorriem e acenam umas para as outras (representadas aqui por avatares como Alexandra Shipp e Dua Lipa, Issa Rae e Ritu Ary u, Hari Nef e Sharon Rooney). É um espaço pop-art selvagem, quase explodindo com cores supersaturadas, onde as cabeças das bonecas aparecem em contraste menor e iluminadas por trás, obrigando-nos a apertar os olhos para distinguir os rostos dos atores.

Você meio que espera ver uma mão gigante chegar do céu para interagir com esses brinquedos realistas, mas não é assim que funciona. Em vez disso, Gerwig convoca Helen Mirren como narradora para estabelecer as regras, parando de vez em quando para destacar trajes específicos, interpor comerciais de TV vintage ou lançar sombra sobre produtos descontinuados – como Growing Up Skipper, com seu busto inflável; a grávida Midge; ou ofertas de sabor questionável, como Sugar Daddy e Tanner, um cachorro reunido que faz cocô de de plástico.

Escrito por Gerwig e seu parceiro, Noah Baumbach, o filme apresenta a Barbie em mais um dia perfeito na Barbieland, na qual existem bonecas interpretadas por humanos no que se assemelha a um condomínio fechado na terra dos brinquedos. Lá, emoldurada por uma cordilheira pintada, Barbie e um grupo diversificado de outras Barbies governam, vivendo em casas com poucas paredes externas. Com seus telhados planos, linhas limpas e decoração rosa – uma TV esférica, mesa e cadeiras estilosas – o visual abrangente evoca a época em que a Barbie chegou ao mercado. É uma vibe muito californiana por volta de 1960, uma estética que poderia ser chamada de chiclete moderno de meados do século. E onde ficam os ken’s? Bem, isso é irrelevante.

Até porque Barbie não apenas zomba da Mattel; ele sai direto e acusa a boneca mais vendida de atrasar o movimento das mulheres. Como um adolescente indignado diz à Barbie: “Você tem feito as mulheres se sentirem mal consigo mesmas desde que você foi inventada.” Essa reprovação atordoa a animada personagem de Robbie, que acorda todos os dias no mundo de fantasia sempre ensolarado e rosa pink, onde as Barbies vêm em todas as cores e tipos de corpo. Elas ganham prêmios Nobel e ocupam todas as 12 cadeiras da Suprema Corte. E ocasionalmente são incomodados por dezenas de bonecos Ken, que estão claramente inseguros sobre serem vendidos (e mantidos) separadamente.

Gerwig se diverte nesse universo que ela construiu para as telonas e, em seu papel de amistosa companheira de brincadeiras, ela se esforça para garantir que você também se divirta. Ela leva você para um passeio de lazer, aumenta as músicas, encena alguns números musicais da velha guarda, no estilo de Hollywood e traz aqueles eternos ajudantes, os Kens (com o principal deles, Ryan Gosling, que rouba a cena). O design de produção (Sarah Greenwood) e os figurinos (Jacqueline Durran) oferecem prazer, mas também destacam a artificialidade (intencionalmente) deste lugar. Barbie e o restante, são do nosso mundo e não, existindo em um paraíso de plástico que se mostra menos hospitaleiro quando ela começa a ter pensamentos e experiências não-Barbie: ela pensa na morte, e então seus pés, que são moldados para caber em saltos altos, ficam chatos.

Essa mudança no corpo da Barbie é usada de forma cômica – as outras Barbies ficam horrorizadas – mas é crucial para a trama e para as intenções de Gerwig. Assim que os pés de Barbie tocam o chão, ela busca o conselho de uma versão desajustada da boneca (a imponderável Kate McKinnon), que prescreve Birkenstocks e uma viagem ao mundo real. Logo, Barbie – com Ken andando de patins- viaja para algo parecido com a realidade; que eles pousam em Los Angeles parece uma piada travessa. Lá, Barbie fica surpresa ao descobrir o sexismo, e Ken fica encantado ao descobrir o patriarcado, revelações contrapontística que geram mais comédia e esclarecimentos.

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Gerwig lida com a transição entre os reinos sem problemas, mas mesmo neste filme animado e feliz, a realidade se mostra uma chatice. É engraçado quando Barbie aponta um outdoor cheio de mulheres que são miss simpatia, confundindo-as com a Suprema Corte porque é assim que a corte é na Terra da Barbie, só que com mais rosa. Ela descobre o quanto estava errada, o que é o ponto de Gerwig. Por mais politicamente afiada que  Greta seja, a mordaça é um lembrete desagradável de todas as maneiras profundamente sem graça pelas quais este mundo, com suas mãos visíveis e invisíveis, tenta controlar as mulheres, colocando-as em caixinhas.

A Mattel há muito tenta conciliar a Barbie com o mundo real. As origens do brinquedo estão com Ruth Handler, fundadora da Mattel que queria fazer uma boneca para meninas como sua filha, Barbara (Barbie… Barbara… São a mesma pessoa). Handler encontrou sua inspiração na Europa com uma boneca alemã de aparência adulta chamada Bild Lilli que a Mattel reconfigurou. Alguns compradores recuaram: “A ideia de uma boneca com seios não foi bem recebida”, disse Handler em uma entrevista em 1994.

Os seios de Barbie e o resto dela continuaram a gerar críticas, inclusive de médicos que tratam de dismorfia corporal. Nos últimos anos, a Mattel tentou tornar a boneca mais relevante culturalmente, adicionando carreiras e não apenas novos produtos em seu portfólio. “Quando uma garota brinca com a Barbie, ela imagina tudo o que ela pode se tornar”, prometia um anúncio da Mattel durante um período de vendas fracas. A linha Fashionistas apresentou novos formatos de rosto, cores de olhos e tons de pele, seguidas de versões baixinhas, curvilíneas e altas, uma diversidade que tem valido a pena. Em 2019, a Mattel anunciou que este filme da Barbie seguiria em frente com Margot Robbie como a estrela principal.

Como artista, Robbie sempre aparece na tela, e sua vez aqui como uma loira clássica que tem mais coisas acontecendo do que o estereótipo sexista sugere sobre ela ser charmosa e sutilmente gradual; aqui, você pode ver a luz acender gradualmente atrás de seus olhos. Como a simpática funcionária da Mattel de America Ferrera, Robbie aquece o filme, expandindo e aprofundando suas emoções. Isso é particularmente necessário porque a obtusidade e o arco cômico de Ken – bem como os movimentos inexpressivos e de dança de boy band de Gosling – desviam recorrentemente a atenção da atriz e de seu personagem. Por mais narrativamente motivada que seja, essa ofuscação da Barbie efetivamente sugere que apenas os Kens do mundo precisam ter sua consciência elevada.

O mundo real pode inicialmente confundir Barbie, mas ela descobre. Isso é exatamente o que você esperaria, já que a Mattel fez parceria com a Warner Bros. para este filme e está apostando muito nisso (e está dando super certo). De sua parte, Gerwig descobre isso vibrando com alegria, explorando a nostalgia, apresentando seu grande elenco (Will Ferrell, Issa Rae, Simu Liu, Dua Lipa, Helen Mirren, Michael Cera e dentre outros grandes nomes) e, na maior parte, esquivando-se das contradições espinhosas e das críticas que se agarram à boneca. E embora Gerwig faça algumas críticas – como quando uma adolescente acusa Barbie de promover o consumismo, pouco antes de ela se tornar amiga de nossa heroína – elas parecem mais meras piscadelas para os adultos na plateia do que qualquer outra coisa.

Barbie só pode pressionar até certo ponto. Esses filmes não podem danificar os produtos, embora eu não tenha certeza se a maioria dos espectadores gostaria disso; afinal, isso reflete em nossa histórias com a boneca e, consequentemente, em nós mesmos. Dito isso, Gerwig faz muito dentro dos parâmetros inerentemente comerciais do material, embora não seja até o final – coroado por uma última linha nitidamente engraçada e filosoficamente expansiva – que você vê a Barbie que poderia ter sido. Os talentos de Gerwig são um dos prazeres deste filme, e espero que eles sejam totalmente exibidos em seu próximo – só espero que desta vez seja a casa de seus sonhos mais loucos.

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É meio que perfeito que Barbie esteja abrindo ao lado de Oppenheimer de Christopher Nolan, já que o sucesso de bilheteria de poder feminino de Gerwig oferece uma forma rosa pink de criação própria, plantando exemplos positivos do potencial feminino para as gerações futuras. Enquanto isso, ao mostrar um senso de humor sobre os tropeços do passado da marca, isso nos dá permissão para desafiar o que a Barbie representa – nada do que você esperaria de um comercial de brinquedo de longa metragem.

Barbie estreia nos cinemas nacionais no dia 20 de julho.

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