“Infelizmente acabou a competitividade. Não existe mais nenhum adversário a altura de Better Call Saul”. Se for possível descrever a série em uma frase, com certeza seria essa. A cada temporada ficou mais claro a magnitude e perfeição construída por Vince Gilligan, cada cena ou plano filmado, nada é gratuito! Tudo possui seu devido espaço, cada detalhe, espaço, música, saturação e performance aumentam inegavelmente essa mistura entre assistir e sentir a arte.
Quando surge a ideia e desenvolvimento de uma série derivada de Breaking Bad com foco no famoso advogado Saul Goodman, foi recorrente o medo dos fãs ou matérias argumentando a gigante chance de dar errado, mexer em um universo já estabelecido e com uma história já fechada. Mas quem disse que não existem outras narrativas abertas? Personagens que não tiveram seu legado devidamente explorado e uma possibilidade ousada de introduzir figuras importantes desse universo, que nunca vimos ou ouvimos falar. O atual interesse dos streamings é a busca pela maratona ou experiências curtas, BCS é feito no acúmulo, uma longa jornada de quase sete anos que busca atormentar, divertir e recompensar seu público.
Impressionante notar como BCS brinca com o universo Breaking Bad, mas não de uma forma satírica. É um produto/obra que ressignifica a série original de mesmo criador, adicionado camadas para todos os personagens: desde Mike, Gustavo Fring, Hector Salamanca, Saul Goodman, entre outros. É uma confiança com seu público fiel, passada desde locais antológicos desse mundo, até objetos e frases. É uma recompensa que exige muita paciência e carinho com a série, uma cumplicidade que só pôde ser alcançada com muita espera e um roteiro de extrema qualidade e coesão. Fica mais que claro a sensação passada na última temporada de recompensar seu público, entre conexões emocionais e easter eggs. É um trabalho primoroso que tira o codinome de ser um simples spin-off de BKB, é uma série do Saul Goodman!
O palco construído por BCS trouxe a façanha de apresentar e construir novos personagens que provaram sua importância para o gigante Passado- Presente- Futuro da série. Por começar na melhor personagem: Kim Wexler, uma coprotagonista e com crescimento maravilhoso durante as seis temporadas, a mistura do passado conturbado e a nova vida alcançada ao lado de Jimmy, transformando-a numa espécie de anti-heroína é genial. Inclusive a construção de ação/ consequência da série é um show a parte, com tudo ficando mais claro na última temporada. O choque passado pelos dois atores por conta de um acontecimento causado por sua próprias ações egoístas e maléficas é uma epopeia. Não á toa, o destino dos dois é drasticamente alterado, assim como o próprio estilo de narrativa. As situações e relação construída desses dois personagens nos resume que no fim é uma honesta história de amor.
O personagem Lalo Salamanca merece seu devido respeito, na última temporada é quase que catártico que sua presença é muito parecida com uma entidade. Toda a brincadeira envolvendo sua chegada a casa de Jimmy, misturando o gigante clima de tensão e a jogada das velas se remexendo, uma espécie de antecipação ao perigo, é genial. O trabalho do ator Tony Dalton é sublime, transformar uma figura até que parecida com o “Seu madruga” num psicopata imparável e inalcançável é de tirar o chapéu. Um vilão de respeito, que cada episódio cresceu mais e mais, causando medo até no antológico vilão Gus Fring. Ele com certeza teve seu charme, seu espaço e entrou na belíssima galeria de vilões de Breaking Bad.
A pauta muito explorada por Vince em BKB no anti- herói encarnado pelo personagem Jesse Pinkman é passada pela figura de Nacho, em uma jornada de crime, punição e redenção. Algo que o roteiro dessas duas séries sempre tenta alcançar é o realismo, vimos em El Camino, Pinkman conseguindo sua fuga, seu novo começo, pois apesar de todo o desastre que ocorreu em sua vida ele era uma boa pessoa, que poderia buscar uma nova vida. Não diferente, Nacho possui um caminho parecido, pacientemente o público se afeiçoa e torce pela fuga do mesmo, apesar de quase impossível de ser realizada. Infelizmente esse universo sempre nos deixou claro de se tratar de uma série grudada com a vida real, e nem sempre todos conseguem escapar dessa vida.
Algo que vale destaque é a construção do futuro de Better Call Saul, cuidadosamente aplicado desde o início da série, onde víamos um Saul Goodman escondido do mundo, foragido. Temporada após temporada íamos descobrindo mais sobre essa nova vida do personagem, tudo isso passado pelo simples e clássico preto e branco, uma vida vazia/sem cor. Curiosamente possui apenas dois momentos de cores diferentes, nos momentos em que Saul/Jimmy/Gene viam seu antigo comercial de advogado, um relance de cores vivas para um período tão apático da vida daquele homem. Um ser com diversas identidades, mas com um claro vazio no peito ou como ele mesmo admite: “Eu não tenho ninguém, se eu morrer, ninguém ficará sabendo”.
Em Breaking Bad, Walter White teve sua jornada sobre emancipação, Jimmy teve sobre sua própria identidade, sobre quem ele realmente é. A discussão feita no último episódio deixa claro isso, ele sempre foi e sempre será desse jeito. O próprio personagem sabe disso, desde seu início. Better Call Saul é um evento, não apenas para os fãs do universo, é uma catarse televisiva. Uma perfeita mistura de Passado/Presente/Futuro, um roteiro que encaixa perfeitamente as duas séries, e talvez essa última temporada tenha aumentando a importância que esse “Spin-off” deixou para o legado BKB. É um final/epílogo perfeito, o personagem Saul Goodman sempre brilhará, mesmo que nunca mais suba em um tribunal. Despedida é algo difícil mesmo.