seg, 29 setembro 2025

Crítica | Bicho Monstro

Publicidade

O Brasil é um país de um vigor cultural inesgotável, e isso reverbera com intensidade no cinema. Nossa tradição multicultural nos oferece um vasto catálogo de mitos, símbolos e narrativas que se enraízam tanto na ancestralidade indígena quanto nas matrizes africanas e europeias. É justamente nesse quadro tão simbólico que o realismo fantástico encontra terreno fértil: o extraordinário nunca se impõe como ruptura, mas como parte constitutiva do cotidiano. Aqui, o mágico não é fuga, mas memória; não é adorno, mas linguagem.

Bicho Monstro parte de uma colocação instigante ao se lançar nesse território. O filme caminha pelo vale da estranheza, aquele espaço descrito por Freud como o “inquietante”: o familiar que, subitamente, se torna estranho e nos captura. Há algo de fisgante nesse desconforto, nessa presença que parece nunca se deixar conter ou explicar por completo. O estranho, nesse caso, surge como tradição, como uma fábula passada de geração em geração — onde a utilização de não-atores reforça essa ideia do mítico geracional. O cinema brasileiro tem longa tradição nesse diálogo entre o real e o insólito, de Guimarães Rosa à verve poética de Glauber Rocha, passando pelo popular que sempre flertou com o folclore em narrativas orais e imagéticas. 

Bicho Monstro se insere nessa linhagem. Contudo, por mais interessante e instigante que Bicho Monstro possa ser — sobretudo como obra que revisita um imaginário folclórico tantas vezes relegado ao esquecimento —, há no filme uma sensação de estagnação. A narrativa, em vez de se expandir, parece andar em círculos, orbitando constantemente o mesmo ponto de partida. Não que o cinema precise conduzir necessariamente o espectador a um destino claro ou a uma catarse final; grandes obras já demonstraram que a força do realismo fantástico reside, muitas vezes, na suspensão, na irresolução. Mas em Bicho Monstro , essa suspensão não se converte em nada.

Publicidade

O resultado é uma prolixidade formal e narrativa que, ao invés de potencializar a estranheza, a dilui. O filme tem 1h16 de duração, mas se alonga em sua própria circularidade, como se repetisse o gesto inicial sem jamais se transformar. A experiência do espectador deixa de ser de encantamento ou inquietação, e se aproxima de um estado de espera constante — uma espera que nunca se cumpre. É nesse ponto que o longa revela sua ambiguidade: se, por um lado, acerta ao tensionar a relação entre o real e o fantástico, por outro, falha em transmutar esse tensionamento em dramaturgia viva. O mito retorna, mas retorna sempre igual, sem metamorfose, sem reverberar plenamente na carne dramática da obra.

De fato, Bicho Monstro se assemelha a uma fábula oral transmitida de geração em geração, na qual fragmentos se perdem pelo caminho, mas o essencial permanece: a atmosfera de inquietação. É uma história que se recompõe a cada narrativa, nunca idêntica, mas sempre guiada por um mesmo propósito — provocar o medo, o desconforto, a estranheza. Não é o medo da violência explícita ou da ameaça concreta, mas aquele que nasce do desconhecido, que se esconde nas frestas de nossas florestas e, sobretudo, na vastidão de nossa própria história cultural.

Talvez a intenção do filme seja justamente essa: não oferecer uma narrativa que avance de maneira convencional, mas recriar a sensação de ouvir uma avó contando uma história que não precisa de um desenvolvimento para cumprir sua função. O objetivo não é levar o espectador a uma conclusão, mas fazê-lo habitar o terreno instável do estranho — esse espaço onde mito e realidade se entrelaçam, e onde a experiência do estranho é mais importante do que qualquer resolução dramática.

Publicidade

Publicidade

Destaque

Caique Henry
Caique Henryhttp://estacaonerd.com
Entre viagens pelas galáxias com um mochileiro, aventuras nas vilas da Terra Média e meditações em busca da Força, encontrei minha verdadeira paixão: a arte. Sou um apaixonado por escrever, sempre pronto para compartilhar minhas opiniões sobre filmes e músicas. Minha devoção? O cinema de gênero e o rock/heavy metal, onde me perco e me reencontro a cada nova obra. Aqui, busco ir além da análise, celebrando o impacto que essas expressões têm na nossa percepção e nas nossas emoções. E-mail para contato: [email protected]
O Brasil é um país de um vigor cultural inesgotável, e isso reverbera com intensidade no cinema. Nossa tradição multicultural nos oferece um vasto catálogo de mitos, símbolos e narrativas que se enraízam tanto na ancestralidade indígena quanto nas matrizes africanas e europeias. É...Crítica | Bicho Monstro