Ser uma antologia é cruel. Enquanto outras séries podem descansar na repetição dos mesmos personagens, das mesmas fórmulas, Black Mirror precisa se provar a cada episódio. É um eterno recomeço — e basta um tropeço para que o público declare que “a série morreu”. Mas, na sua sétima temporada, Black Mirror se reinventa mais uma vez. E o mais surpreendente: se reinventa com afeto.

A temporada abre com Pessoas Comuns, que parece apontar o caminho: uma crítica feroz ao capitalismo digital, mas com o coração exposto. Amanda, interpretada por Rashida Jones, precisa salvar a própria vida com um procedimento experimental que transfere sua consciência para a nuvem. O problema? A tecnologia é por assinatura, caríssima, cheia de taxas escondidas e mudanças de contrato (soa familiar?). É Black Mirror mirando direto na Netflix, e fazendo isso com uma ironia afiada, mas sem perder a humanidade. A história dói. A crítica é clara. Mas o que permanece é o carinho entre Amanda e o marido — e a constatação de que, num mundo cada vez mais automatizado, o amor ainda é o único dado que importa.
Em seguida, Bête Noire puxa o tapete do espectador com um jogo psicológico saborosamente cruel. Maria, uma funcionária correta, começa a desconfiar que sua nova colega é… perigosamente desequilibrada. Mas ninguém acredita nela. O que começa como uma comédia de erros vira uma espiral de gaslighting e pânico, alimentada por pequenas microviolências que vão se acumulando até o colapso. O episódio flerta com o Efeito Mandela e com teorias de multiverso, mas o que realmente perturba é o quanto tudo parece possível no nosso mundo real. O final? Um grito de riso nervoso ou um suspiro de “meu Deus, isso sou eu?” — depende de quem assiste.
Hotel Reverie talvez seja o episódio mais delicado da temporada. Brandy, interpretada por Issa Rae, é uma atriz que aceita participar de um remake inusitado: ela será inserida em uma simulação de um filme noir dos anos 1940, contracenando com uma IA que interpreta a protagonista da história. Sim, a simulação tem suas panes e o episódio traz reflexões relevantes sobre o uso de inteligências artificiais na indústria – especialmente em Hollywood, que recentemente viu esse debate dominar as manchetes durante a Greve dos Atores de 2024. Mais do que uma crítica ao sistema, o episódio se apoia nos sentimentos: na conexão entre humano e máquina, na nostalgia de um cinema que talvez nunca tenha existido de fato, e no afeto construído entre duas presenças que, apesar de programadas, compartilham momentos genuínos. É Black Mirror colocando o coração onde antes só havia aço.

Nem tudo, porém, é sucesso. Brinquedo promete mais do que entrega. Peter Capaldi está magnético como um suspeito de assassinato preso numa sala de interrogatório com design futurista, mas o episódio mal arranha seu próprio potencial. A ideia de um jogo virtual que mistura Stardew Valley e Tamagotchi é interessante, mas não se transforma em narrativa. Quando os créditos sobem, o que fica é a sensação de que a história acabou de começar — e foi cortada no meio.
A melancolia sutil e sincera retorna em Eulogy, um dos episódios mais tocantes de toda a série. Paul Giamatti dá vida a um homem solitário que revisita seu passado através de fotos antigas, agora transformadas em experiências imersivas. Não há distopia, nem grandes reviravoltas. Só um homem, suas memórias e o peso de tudo que deixou passar. É Black Mirror de alma limpa, sem armaduras tecnológicas, refletindo sobre o que realmente vale a pena lembrar. E a resposta, quase sempre, está nas coisas mais simples: cartas escritas à mão, fitas cassete, o toque de alguém que já se foi.

A temporada fecha com USS Callister: Into Infinity, uma continuação direta do sucesso da quarta temporada. O episódio nos leva de volta ao universo inspirado em Star Trek de forma tão dinâmica que nem sentimos os 90 minutos passarem. É ficção científica no melhor estilo Black Mirror clássico: criativa, sarcástica, emocionante e profundamente humana. Ao revisitar os personagens da história original, a série entrega um encerramento digno e carismático, com direito a tensão, redenção e aquele toque sombrio que marcou os primeiros anos da antologia. É o tipo de episódio que lembra por que tanta gente se apaixonou por ficção científica em primeiro lugar — não só pelas naves espaciais ou pelos dilemas tecnológicos, mas pelas perguntas humanas que ainda ecoam no vazio do universo.
No fim, a sétima temporada de Black Mirror não acerta em todos os tiros, mas acerta onde mais importa. A série, antes tão focada em refletir o pior do nosso futuro, agora mostra que também consegue ser reflexo da nossa fragilidade, dos nossos afetos e daquilo que ainda queremos preservar. O espelho segue rachado — mas talvez seja por essas frestas que entra a luz.