qui, 21 novembro 2024

Crítica | Bravura Indômita

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Bravura Indômita de 1969 carregava consigo um elemento que transcendia o homônimo livro escrito por Charles Portis. Se a proposta inicial era tratar de destituir a figura do cowboy como símbolo ideológico americano, o longa dirigido por Henry Hathaway encontrava em seu Rooster Cogburn a representação de uma Hollywood na virada para o movimento pós-clássico. A escalação de John Wayne – conhecido por seus papéis nos faroestes fordianos – para o papel do ex-xerife beberrão, evidenciava uma quebra com as antigas instituições características do cinema americano, aparentando certa crise de Hollywood com o western. Não que o próprio Ford já não tenha apresentado críticas ao próprio gênero, como no caso deSangue de Heróis (1948), Nos Tempos das Diligências (1939) e O Homem que Matou o Facínora (1962); mas no caso de Bravura Indômita, Hathaway parece querer ilustrar a transição do herói destemido para o bêbado que cai do cavalo. São relações que ultrapassam os limites do cinema, de fato; mas também é fato como Hathaway, sabendo do contexto e do ator que escalava, usa desses artifícios para construir uma comicidade sutil, mas muito bem articulada. Não seria por menos que Wayne, em seus plenos 62 anos, aceitaria um papel que serviria como um indício de sua despedida do cinema, mas que partiria de uma autoconsciência bastante característica da época.

Bravura Indômita de 2010 é econômico. Se em 69 Hathaway usava quase metade do tempo para apresentar Mattie Ross (Kim Darby) e desenvolver sua busca pelo assassino de seu pai, na versão dos Coen, Mattie (Hailee Steinfeld) surge bem mais preparada para enfrentar o mundo fora da fazenda de sua família – a personagem é apresentada chegando em Fort Smith e já precisando reconhecer o corpo do pai no caixão. Da mesma forma, os desdobramentos de Mattie para conseguir o dinheiro do serviço de Cogburn invertem de ordem. Se no original a busca pelo dinheiro se dava primeiro pela proposta do ex-xerife, a refilmagem oferece características mais ativas a personagem – dando a Mattie a iniciativa de ir atrás do serviço já com a posse do dinheiro. Tal dinamicidade prejudica os atos referentes ao contraste entre as conquistas argumentativas de Mattie e o mundo em adaptação de uma legislação mais presente. Eram nesses momentos de onde partiam um desenvolvimento mais aparente da transição de estados sociais da época que ironizavam o contexto de um Estados Unidos moderno – mesmo após a guerra de secessão. Mesmo existindo cenas como a negociação dos cavalos – rendendo uma excelente piada com little blackie – os irmãos Coen estão mais interessados em colocá-la dentro de situações desagradáveis que representem uma brutalidade existente – nada melhor para quem deseja a morte do que dormir com os mortos.

Hathaway tinha uma noção cômica parecida com o tipo de humor usado pelos Coen. A cena do enforcamento público ao fundo com crianças brincando de balanço em primeiro plano, geram uma composição cômica bizarra – nos remetendo às estranhezas adotadas pelos irmãos. Aqui, a divergência entre inocência e violência é trocada pela fala cortada de um indígena diante de seu enforcamento. Não tem o mesmo apelo como o primeiro, entretanto, a interrupção da fala, mediante a outras completadas por pessoas brancas, inserem o contexto numa visão mais geral, podendo se relacionar com acontecimentos atuais. O trabalho dos Coen usa das situações esdrúxulas para se distanciar de Hathaway, mas também as usa para se aproximar do material original de Portis. O encontro de Mattie e Cogburn (Jeff Bridges) não acontece quando o ex-xerife volta de uma caçada pelo território indígena, e sim quando o mesmo está defecando nos fundos de onde mora. A primeira barreira que Mattie encontra não é a idade, a falta de experiência ou o dinheiro, mas a porta da casinha – o encontro inusitado com a possível figura heroica ocorre em seu momento mais vulnerável. É a desconstrução do herói em sua forma mais escrachada. Outro momento – esse originário do livro e excluído do longa de 69 – é quando Cogburn decide mostrar para Laboeuf (Matt Damon) – texas ranger que acompanha ele e Mattie na caçada a Tom Chaney (Josh Brolin) – que sua pontaria está em dia. Visivelmente bêbado, Cogburn tenta lançar uma garrafa de whisky ao ar para usá-la de alvo. As tentativas são frustradas por LaBeouf, que acerta bem antes de seus tiros atingirem o recipiente. Irritado, Cogburn atira diversas vezes na garrafa sem sucesso. Pode parecer um comentário pouco sugestivo e até meio didático – diferente da cena vista em Os Imperdoáveis (1992) – mas o tom satírico de Bridges com a figura, diferente de Wayne – onde ia até certo ponto – constroem a totalidade da proposta de ironizar o arquétipo do pistoleiro. Por outro lado, a postura de Bridges passa uma sensação de consistência mais firme que Wayne. Sua relação com a bebida não expõe o vício como algo problemático e sua postura de individualista dão aspectos de uma pessoa mais rígida – diferente da atuação mais extrovertida de Wayne.

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Já que os Coen não tinham a dificuldade de segurar todo o peso que Wayne trazia consigo, a refilmagem buscou aperfeiçoar o relacionamento de Mattie e Cogburn inserindo momentos particulares entre os dois. A solução para desenvolver tais laços foi tirar LaBeouf de boa parte do longa e aproximar a câmera de suas feições. O escopo dos planos abertos é diminuído para desenvolver conversas mais dinâmicas e centrar em acontecimentos mais direcionados – como quando acham o corpo enforcado ou o médico usando pele de urso. LaBeouf, por sua vez, é bastante reduzido em comparação ao original, virando objeto de sadismo dos Coen, entregando uma posição bastante ridícula se comparada com a atuação de Glen Campbell. Quando precisa aparecer dentro da ação, LaBeouf aparece perdido e suas consequências viram motivo de piada – a língua cortada o faz falar de forma engraçada. Por mais que os irmãos se divirtam com a idiotização do personagem, ainda sobra espaço para desenvolver sua relação com Mattie – expondo algumas circunstâncias que antes eram apenas sugeridas.

No final, a fotografia de Roger Deakins dá um outro significado a cena em que Mattie cai no poço. Sua já característica composição com sombras fazem uma homenagem aos filmes de Ford e dão a Cogburn de volta a aura do grande herói de faroeste. O sacrifício que faz por Mattie – chupando o veneno de sua corrente sanguínea e a carregando até achar uma ajuda – partem de uma lógica de redenção do personagem, porém, impõe uma certa masculinização bastante específica do gênero. Se no filme de 69 terminava com Cogburn mostrando que ainda tinha alguma habilidade, no de 2010, os Coen terminam com um epílogo mostrando que o personagem viveu seus últimos dias em um circo. Pode parecer que Mattie procurava em Cogburn uma figura paterna ausente, ou então uma primeira paixão platônica; nesse último ato, os Coen não resgatam a hombridade do ícone, mas uma memória que ficou enterrada.

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Gabriel Luna
Gabriel Lunahttp://estacaonerd.com
Jornalista que se aventura no mundo da crítica de cinema. Gosto de café e filme em preto e branco.
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