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    Crítica | Caminhos da Memória

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    Situados no alto de uma torre cercada por uma Miami quase submersa, Nick (Hugh Jackman) e Mae (Rebecca Ferguson) compartilham um momento romântico contemplado pelo sol poente. Em dado momento, Nick narra o mito de Orfeu e Eurídice como exemplo de uma história com final feliz. O fato é que a história tem um final trágico. Se antes o conto fora utilizado para contextualizar o final pessimista de um romance proibido no excelente Retrato de uma Jovem em Chamas (2019), em Caminhos da Memória, o mito grego perde suas sutilezas para ser inserido de forma conveniente em uma ficção científica envolta de sacadinhas.

    Miami é tomada pela força do mar. O papel de uma sociedade caótica, categorizada pelo contexto cyberpunk, se apresenta como uma justificativa para que as pessoas busquem conforto em um passado distante – assim explana o personagem de Jackman em suas várias narrações – devido a uma falta de perspectiva com o futuro. A tecnologia usada como refúgio, o “Tanque”, permite que, quando deitado em uma câmara com água, o usuário possa experienciar momentos marcantes de sua vida como um analgésico pessoal. A função de Nick é guiar os caminhos da mente para acessar tais memórias desejadas. Sua parceira Wattz (Thandiwe Newton) e companheira de guerra – do qual é citada constantemente como um dos eventos que causaram essa crise social – trabalha como monitora das ações cerebrais durante o processo. Da forma que é estruturado, o aparelho permite uma materialização da memória em uma espécie de véu que une o mundo imaginário e o real; logo, Nick é um voyeur. Sua obsessão por querer compreender o comportamento alheio leva-o a se viciar no tanque na esperança de descobrir o que levou Mae a sumir de sua vida.

    A mistura de ficção científica com noir policial não se encaixa com a ambientação esteticamente limpa de uma cidade que não parece estar ciente de sua destruição. Enquanto tenta demonstrar diversas vezes a iminência do colapso, com pichações nas paredes contra os “barões da terra”, ou com personagens expondo nominalmente a situação, a direção de Lisa Joy parece pouco preocupada em criar uma unidade que denote tempos mais desesperadores. Pelo contrário, as paisagens belamente compostas para demonstrar os momentos românticos de Nick e Mae remetem muito mais a uma Veneza dentro de um contexto apaixonante – envolta por águas minimamente agitadas e uma iluminação amena. Até o local dito como mais abandonado demonstra um certo cuidado estético na hora de realizar composições visualmente agradáveis.

    Assim que abre o filme, o personagem encontra uma carta de baralho na rua. Ao retirá-la da água, percebeu que era uma rainha. O aceno ao espectador mostra-se como reflexo de Westworld – série que trabalha como criadora ao lado do marido, Jonathan Nolan. As sacadinhas visuais e narrativas se encaixam no mesmo problema da famosa série da HBO, que constantemente busca jogar diversas pistas como forma de prender o espectador até o final dos episódios. O recurso aqui aparece não só como elemento cansativo, mas uma afronta à inteligência, recorrendo a montagem didática e pouco interessada em elaborar a mistura entre passado e presente. Análogo a isso, a inundação também é referenciada paralelamente a situação de Nick estar se entregando a um passado que não existe mais.

    Comprometida com auto-referências, Lisa Joy tem seu momento de inspiração quando coloca a materialização do tanque em uma cenário parecido com uma sala de cinema. Ao inserir na narrativa um momento genuinamente cinematográfico, Joy faz uma relação muito interessante entre o resgate de uma memória e o cinema como exibidor de uma ação ocorrida durante o tempo de projeção. Nick observa aquele fragmento de tempo do mesmo jeito que o espectador, ao assistir um filme, tem acesso a uma pequena parte de todo um universo. A relação entre cinema e memória se dá pelo fato dessa mistura entre o registro feito em um passado distante e o ato exposto no presente. Se acima tinha afirmado que Nick era um voyeur por analisar todas as memórias de seus pacientes, o espectador também se comporta como um em uma sala de cinema. Somos direcionados a participar dessa experiência de forma passiva, observando cada acontecimento e assimilando a nossa forma. É uma conversa simples que a diretora tem conosco, mas que ganha destaque em meio a tantos problemas que integram o longa.

    Orfeu e Eurídice são usados para ilustrar a realidade de um homem que só consegue olhar para o passado. As relações superficiais que Caminhos da Memória constrói apenas são um acobertamento do próprio cosmo. Lisa Joy trás para o cinema os mesmos problemas aplicados em Westworld em uma tentativa de idealizar uma mitologia sem sustentação própria; ao se fazer por meras sugestões alusivas, acaba se afundando em sua própria realidade. Na verdade, existe uma certa regressão da diretora na forma de explorar certos conceitos da ficção científica que não se apresentavam na série. Joy parece estar bem menos interessada em desenvolver esses aspectos e está mais focada em detalhar elementos que irão aparecer como uma grande revelação conjunta dentro de um final amarrado. Nick está preso a sua própria mentira, assim como Joy está presa a uma piscadela espertinha.   

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