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    Crítica | Censor

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    Talvez pela forma ao mesmo tempo tão ampla e tão direta como penetra os sentidos do espectador, o cinema alcançou muito rapidamente – estamos falando, afinal, de uma arte nascida há pouco mais de um século – um grau de alcance popular que levou à formação de um arcabouço de imagens e sons que conversam de maneira muito intuitiva com o público em suas variadas tendências. Em se tratando do cinema de horror, essa afirmação se mostra ainda mais verdadeira. Trata-se, afinal, do gênero que se debruça sobre os anseios e temores mais primitivos do humano, colocando-o de frente, para o bem e para o mal, com afetos reprimidos pela vida social “comum”. Não à toa, conquistou e mantém aquele que talvez seja o segmento de público mais fidelizado, sempre à procura de consumir novas – ou mesmo recicladas – maneiras de lidar com o terror.

    Decorrência disso é que não é novidade para o cinema de horror refletir sobre si mesmo, debruçando-se tanto sobre seu passado como sobre seu controverso impacto social. É a partir dessa premissa que a diretora Prano Bailey-Bond constrói em Censor um exercício de dialética entre as possibilidades de controle social dos afetos a partir de sua negação e a necessidade de lidar com eles de maneira frontal. No filme, Enid (Niahm Algar) é uma censora de filmes que, no auge da invasão do mercado britânico por produções independentes em VHS, trabalha para limitar o conteúdo de terror que chegará ao público. Quando, porém, se depara com um vídeo que parece baseado na história do desaparecimento de sua irmã, ainda na infância, Enid inicia uma busca pelos responsáveis em paralelo a um resgate da sua memória do acontecimento.

    “Não são filmes divertidos, mãe. Faço isso para proteger as pessoas.”, afirma a protagonista em certa altura. É justamente orientado por essa ilusão de controle e proteção que Censor trilha sua narrativa. Tudo aqui é marcado por uma tentativa de conformação da realidade por parte de Enid, que esconde nessa missão a priori nobre de “proteger as pessoas” a intenção de proteger a si mesma, de fugir dos seus instintos e, sobretudo, da culpa de sua memória. O conflito entre a necessidade de lidar com os fatos e a possibilidade de moldá-los a sua conveniência é o mote não só do ofício da personagem, mas de todo seu arco.

    A forma como Bailey-Bond concebe sua encenação, aliás, busca a todo instante ressaltar uma percepção de estreitamento, de não abertura. Tudo na vida de Enid é feito para parecer pouco convidativo à entrada de elementos externos. Postura física, roupas, locações de trabalho, estrutura do seu apartamento: tudo é muito pequeno e hermético, fechado ao mundo. Ao mesmo tempo, porém, esses espaços por onde ela transita são carregados de uma presença quase fantasmagórica que se faz sentir, sobretudo, pela maneira como a diretora os ilumina. É como se houvesse o tempo todo algo a ser purgado, mas esses espaços comprimidos não permitissem vazão a nada. O filme existe, então, nesse equilíbrio entre a tentativa de manter-se fechado, assumidamente conciso em seu espectro, e a ameaça de ser invadido por afetos indesejados.

    Nesse sentido, ainda que numa escala reduzida quando consideradas as possibilidades abertas ao lidar com a relação espectatorial na tradição do terror – pensar em À Beira da Loucura (John Carpenter, 1994), por exemplo –, Censor é um filme em que forma e matéria conversam de modo engenhoso, mesmo que não tão imaginativo. É verdade que a partir do momento em que a narrativa se aproxima do desfecho a diretora se permite experimentar formas de lidar com o horror que vão além do comum à estrutura de thriller psicológico a que se mantivera restrita antes. Não por acaso, aliás, essa abertura ocorre justamente quando a protagonista parece perder o pulso sobre a narrativa que até ali construía para si e passa a ser enquadrada numa história que não lhe cabe editar e domesticar. Bailey-Bond consegue dar a essa mudança tonal, a essa troca de controle sobre a história e as imagens permitidas a habitá-la um senso de crescendo que engrandece o clímax. Ainda assim, fica a sensação de que a premissa permitia uma exploração menos domada. É como se a diretora quisesse em certo momento se entregar a ideias de linguagem mais B, mas o fizesse mergulhando apenas a ponta dos dedos.

    No todo, Censor é um exercício de terror independente que, a partir de escolhas estéticas bem engendradas por sua diretora e relativamente artesanais, é capaz de comunicar seus conflitos e intuir sua atmosfera de culpa e controle de maneira competente e precisa, ainda que deixe a sensação de que teria potencial para mais. Um “acerto”, por assim dizer, mas é preciso sempre lembrar que em arte “acertar” ou “errar” está longe de ser suficiente.

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