Lançado no Festival de Gramado de 2020 e dono de carreira relativamente longa no circuito de festivais voltados especificamente à ficção científica ao redor do mundo, Contos do Amanhã, escrito e dirigido por Pedro de Lima Marques, é daqueles casos difíceis de analisar sem levar em consideração aspectos extrafílmicos que vão desde as limitações em termos de produção para a realização de um Sci-Fi que se pretende grandiloquente em escala até a própria coragem de conceber um filme dessa natureza num mercado habituado a receber do estrangeiro exemplares do gênero com condições técnicas mais adequadas para atender às demandas de um público que condiciona o valor da obra a seu grau de proeza em impor uma noção de “verossimilhança” ou algo que a isso se assemelhe.
Coragem, aliás, não parece faltar ao realizador de Contos do Amanhã. Estruturado numa dinâmica de idas e vindas no tempo, o filme parte duma premissa de encontro entre passado e futuro como algo determinante para o destino de ambos. Essa lógica é apresentada já no prólogo. No ano de 1999, Jeferson, um estudante do ensino médio, recebe arquivos de áudio pela internet que dão conta de uma crise prestes a ocorrer no ano de 2165. Apresenta-se uma trama em que uma jovem será sequestrada e se iniciará uma guerra pelo domínio da Cidade-Estado Porto 01, um dos poucos redutos da humanidade após efeitos de um desastre climático que reduziu a população da Terra a um quinto. Caberá a Jeferson desvendar os fatos enquanto lida com agentes enviados do futuro que estão a sua procura.
Não há como deixar de notar, já de antemão, um aparente descompasso entre as pretensões de escala do filme e as condições concretas de sua produção. Digo aparente porque o audiovisual apresenta diversas formas de expressão de ideias e possibilidades de gerar efeitos narrativos e dramáticos, de modo que, embora não se negue a relevância da questão orçamentária, sobretudo em se tratando de um exercício de ficção científica, tampouco se pode falar numa relação intrínseca e inafastável entre esse elemento e o valor artístico da obra. Nesse aspecto, aliás, o diretor se sai bem. De modo geral, para o que importa à história que se pretende contar, encontram-se soluções práticas para a concepção da cidade futurista como um ambiente distópico, hipervigiado e decadente. A economia na maneira como esse espaço é apresentado, decorrente ou não de dificuldades de ordem objetiva, acaba por se mostrar positiva, já que muito da natureza daquela sociedade fica no campo da intuição e da referência a cânones do gênero.
Do mesmo modo, o efeito dessa economia na apresentação dos elementos de Sci-Fi não se faz nocivo porque é nos momentos menores e mais humanos que o filme de Pedro de Lima Marques encontra algum grau de proximidade dramática. A caracterização do protagonista é dotada de um bem-vindo senso de inconsequência, quase desinteresse, num diálogo com a tradição slacker que propicia o engajamento do espectador com a maneira como o herói se relaciona com o mundo. Há algo de essencialmente humano, uma sensação de lento despertar para questões maiores, que atravessa o arco do protagonista e é bem explorada no filme a partir de elementos muito pequenos, como sua relação com a mãe ou mesmo uma tarde passada com a melhor amiga fazendo um trabalho do colégio, jogando videogames e ouvindo músicas enquanto o mundo atravessa uma crise e depende diretamente de sua atuação.
Essa humanidade que poderia ser o fio condutor da obra, porém, fica perdida na maior parte do tempo. Infelizmente – e é uma pena apontá-lo, porque o realizador parece de fato apaixonado pelas ideias do material –, Contos do Amanhã sofre de uma grande carência de foco dramático e mesmo discursivo. É sensível a dificuldade do diretor/roteirista em delimitar as questões que pretende abordar, a forma como pretende fazê-lo e, mais do que tudo, o tom que pretende imprimir a seu filme. Essa dificuldade de encontrar uma unidade, sobretudo no tratamento da sociedade futurista distópica, faz com que, ao mesmo tempo, muita coisa aconteça e nada realmente importe. Acenos a um subtexto político, menções a tiques de fundamentalismo religioso e muita filosofia barata se amontoam em tela sem muito a dizer, apenas prejudicando o envolvimento com o que a obra tem de mais relacionável, que é o fator humano em sua essência, a singeleza das relações entre os personagens. Acaba-se criando um patente desnível de interesse entre o tempo passado, em que vive o protagonista, que carrega quase todo o valor do filme, e o tempo futuro, desprovido de qualquer apelo e perdido numa aparente necessidade de imprimir urgência a um cenário com o qual o espectador simplesmente não consegue se importar.
É revelador dessa fragilidade que o recurso à tradição do gênero procure desesperadamente encontrar uma âncora para chamar de sua – alegoria política, crítica religiosa, provocação filosófica etc. – e acabe tão vazio em todas elas, como se a adoção do Sci-Fi como mote fosse mais um capricho do realizador do que algo organicamente relacionável à dramaturgia proposta. O resultado é um filme que parece fraturado entre seu aspecto mais humano e relacionável enquanto narrativa adolescente e o desejo, que nunca sai do nível de mera curiosidade, do realizador de conceber um exercício de ficção científica.