qui, 26 dezembro 2024

Crítica | Deserto Particular

Publicidade

É fácil acabar encaixando Deserto Particular numa retórica batida aos comportamentos conservadores que assolaram o país nos últimos anos. A figura do policial Daniel (Antonio Saboia), com seu porte ameaçador e a constante sugestão de explosão agressiva, formam uma latência muito pertinente no caminho para construir essa visão de revide. Não apenas pelo contexto trabalhado no prólogo sobre a violência institucionalizada que ganhou a mídia e, consequentemente, revelaram essa face bestial do personagem. Como também por sua obsessão por Sara, mulher que conheceu na internet. Formando um pensamento por essa combinação de aparências, a tragicidade seria a primeira ideia de muita gente. Mas é nessa criação de expectativa, fomentada pelo artificial, que Aly Muritiba faz de seu filme uma mensagem sobre aceitar o amor e resgatar uma reconciliação consigo mesmo e o outro.

A jornada de Daniel até Sobradinho para encontrar a moça vai deixando de pertencer a uma ideia de perseguição e começa a se encaixar na proposta de desespero levado pela paixão. Quando decide atravessar o país numa jornada pessoal, Daniel está indiretamente assumindo seu amor antes mesmo de encará-lo de fato. Nessa eterna dialética entre idealização e o real, Muritiba fundamenta suas escolhas estilísticas na criação dramática convidativa ao encanto. Na cena do encontro entre Daniel e Sara, existe uma composição muito interessante sobre a complexidade dos personagens. Enquanto Daniel é enquadrado ao lado do espelho, criando duas versões de si mesmo (a virtual e a real), Sara apenas é mostrada pelo reflexo, denotando sua construção plenamente formada pelo mundo das ideias. Quando decide mostra-la após essa dinâmica, a personagem preenche a tela, iluminada por uma luz dura e completamente fora de sintonia com a imagem de Daniel. Tudo parte de uma externalização do sentimento com o ambiente e a completa tomada se consuma pela cena da dança.

Foto/Divulgação

Apesar da demarcação temática com a música Total Eclipse of the Heart em sua dramatização, Muritiba equilibra essa euforia com a rigidez do contraste entre a quebra e a expectativa. Nos momentos em que precisa trazer essa realidade oprimida pelo contexto conservador, não falta manejo para acordar os personagens dessa ilusão e retirá-los dessa fantasia, os jogando de volta no mundo que os limita. São nesses momentos que a verdadeira violência criada por Deserto Particular se expande pela história. Não precisa ter uma entrega verdadeiramente física, o corpo sente muito mais pelo silencio, pelo incomodo da situação. A dor física é passageira comparada com a dor da perda.

Publicidade

Ao optar por uma conciliação entre seus conflitos, fica clara a intenção positiva do diretor de usar da história como discurso apaziguador. Porém, acaba por simplificar certos núcleos em uma rápida resolução satisfatória para o meio, mas pouco verdadeira diante da representação antes trabalhada. É como se, para chegar no verdadeiro clímax, precisasse incorporar as alavancas narrativas em um único problema, e disso resolver toda uma questão para caminhar ao encontro planejado. Não soa deslocado, muito menos dispersivo do resto da proposta, mas talvez pareça um pouco conciliador demais para toda a problemática desenvolvida.

Um ponto muito pertinente no longa é a ligação com a cidade de Sobradinho. Enquanto a cidade é inicialmente apresentada como refúgio do homem deslocado, seu passado permeia a narrativa, de forma a se mostrar como alegoria para a situação. Não sendo apenas palco de uma travessia, o município baiano manifesta sua historicidade econômica como a lembrança de um controle imposto e da destruição da verdadeira identidade. Acima da barragem de Sobradinho está localizada a cena mais pura do filme, uma reparação entre os personagens e a cidade. Por se mostrarem tão abertos um com o outro e tão livres – tanto da cidade grande quanto do interior – esse singelo momento contradiz tudo que vinha sendo mostrado, numa esperança de empatia e amor tão necessária dos dias de hoje. A frontalidade do momento de catarse até se presta a sua função, mas é nessa cena que Deserto Particular demonstra toda sua sensibilidade e pureza para tratar de um assunto tão difícil que é o amor.

Foto/Divulgação

Não é necessário esbanjar seus temas como súplica pela importância. Viver, existir, se posicionar, amar. Tudo isso que vai contra essa onda opressora dominante é um ato de resistência. Para ser efetivamente político, o filme só precisa ter ciência de seus temas e abordá-los da forma mais verdadeira que conseguir. Felizmente, Deserto Particular faz de sua história de amor uma esperança para tempos mais conturbados, onde podemos acreditar numa conciliação e na saída para as violências propagadas a esmo pela derrocada político-moral. É bonito ver essa sensibilidade num momento em que ser sensível demostra fraqueza e que demonstrar o afeto torna-se motivo de julgamento. Talvez o filme ganhasse os holofotes em outro contexto, mas ser um símbolo de resistência num país tão fragmentado certamente eleva muito sua potência de atingir a maior quantidade possível de pessoas.   

Publicidade

Publicidade

Destaque

Hudson Meek, ator de Em Ritmo de Fuga, morre em acidente aos 16 anos

Em comunicado publicado pela família nas redes sociais, foi...

A Odisseia | Novo filme de Christopher Nolan tem detalhes revelados; Confira!

A Universal Pictures revelou os primeiros detalhes de The...

Crítica | Sutura

Sutura, série nacional lançada no Prime Video, promete unir...
Gabriel Luna
Gabriel Lunahttp://estacaonerd.com
Jornalista que se aventura no mundo da crítica de cinema. Gosto de café e filme em preto e branco.
É fácil acabar encaixando Deserto Particular numa retórica batida aos comportamentos conservadores que assolaram o país nos últimos anos. A figura do policial Daniel (Antonio Saboia), com seu porte ameaçador e a constante sugestão de explosão agressiva, formam uma latência muito pertinente no caminho...Crítica | Deserto Particular