Na comédia musical de crime Emilia Pérez, Rita (Zoe Saldaña) trabalha em um escritório de advocacia mais interessado em lavar dinheiro do que em servir a lei. Para alavancar sua carreira, ela ajuda Manitas (Karla Sofía Gascón), um chefe do cartel a sair do negócio para que ela possa finalmente se tornar Emilia, a mulher que sempre sonhou ser.
As escolhas formais que compõem um longa-metragem do gênero musical tendem a se apresentar com inventividade e para, não apenas reformular a linguagem filmica presente nesta modalidade de se fazer cinema, mas se atentar às modernidades que refletem diretamente no desenvolvimento da sétima arte ao longo dos anos. Mudanças e aprimoramentos, não somente em musicais, mas em todos os gêneros cinematográficos, dificilmente deixam se marcar presença na atualidade, mesmo havendo estranhos (talvez, seja essa a melhor palavra para distinguir tais obras problemáticas) casos em que a arte é atacada pelo retrógrado, gerando impactos tanto na sua forma quanto no conteúdo, gerando uma produção cinematograficamente pobre, além de problemática e até preconceituosa em seu discurso. Emilia Pérez, a grande aposta da Netflix para a temporada de premiações, indicado a inexplicáveis 13 prêmios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, é um lamentável exemplo desse perigoso retrocesso.
Caricato e visivelmente dedicado a forçar um falso interesse em abordar causas de impacto sócio-políticos da maneira mais escassa de informações e sentimentos, Emilia Pérez se torna um produto da visão fetichista eurocêntrica sob o México e a comunidade transsexual, capaz de transmitir desinformação e se tornar puro pastiche devido aos estereótipos escancarados e desvergonhados que se vê em cena. Não há ousadia no modo como a produção de Jacques Audiard é conduzida, tampouco charme ou invetividade, apenas uma amálgama bagunçada de freneticidade e informações em excesso, que se intensificam a cada número musical repentino, que, além de encaminhar a trama para lugar algum e somente reforçar insistentemente o que está sendo mostrado em tela, são conglomerados de diálogos simplórios e mal escritos que foram musicados independente de seguir um ritmo ou qualquer critério musical. Creditada à dupla Clément Ducol e Camille, sendo esta última a intérprete da canção “Le Festin” da clássica animação Ratatouille (2007), a trilha sonora de Emilia Pérez se entrega ao musical atípico sem ao menos investir em boas ideias, chegando a gerar faixas e interpretações constrangedores como é o caso de La Vaginoplastia e Lady, ambas cantadas/dialogadas principalmente por Zoë Saldaña, que se vê encurralada e até constrangida por um roteiro que parece brincar com um sério procedimento de saúde a ponto de criar letras que procuram engatar uma certa mensagem cômica da situação, principalmente nesta primeira música que faz parte de um dos números musicais mais estranhos e desprovidos de sentido das últimas décadas.
Nem mesmo El Mal e Mi Camino, as duas canções que mais estão representando o filme nas grandes premiações, fogem da má estranheza adotada por seus compositores e intérpretes. Apesar de ambas contarem com letras que guardam significados intensos e interessantes, suas palavras não funcionam quando juntas e cantadas, ainda mais por conta das interpretações desprovidas de criatividade. Enquanto El Mal reflete a freneticidade da direção e montagem em capturar movimentos rápidos, quase indecifráveis, pondo Zoe Saldaña em uma coreografia perdida na própria êxtase, Mi Camino, que conta com a interpretação pouco inspirada de Selena Gomez, utiliza um piegas recurso de karaokê e uma coregorafia em grupo captada por um plano tão fechado que é possível imaginar o cenário esmagando os artistas em cena.
No que se diz respeito à representação da cultura mexicana em Emilia Pérez, não há como enxergar verdades, nem ao menos distinguir se tudo não passa de uma sátira mal elaborada ou um comboio de pesquisas erroneamente realizadas, já que, a todo instante, problemáticas como a violência de cartéis e as más condições de vida são utilizadas como se fossem as principais característica do país, além de, pasmem, inúmeras sequências externas que mostram, em plano aberto, apenas comunidades de baixa renda e nada mais que pudesse remeter ao México, indubitavelmente rico em diversos aspectos, mas que continua sendo visto pelo cinema estrangeiro sob um filtro sépia alaranjado e repleto de miséria.
No audiovisual, existem delírios até considerados inofensivos e que, de vez em quando, nos divertem com suas cômicas e caricatas representações de determinada cultura, mesmo que julguemos o caráter ofensivo e totalmente desprovido de conhecimentos, tal como produções sulistas da Rede Globo que retratam o Nordeste brasileiro com estereótipos que ora são engraçados, ora revoltantes. No entanto, em Emilia Pérez, o roteiro assinado pelo próprio Jacques Audiard e Thomas Bidegain mais parece abraçar o próprio desconhecimento para, mesmo assim, se deslocar para fora da curva ao procurar criticar os problemas sociais mexicanos e retratar o procedimento de mudança de sexo, ignorando a eminente tragédia que tal manobra, cega e impensada, proporcionaria. Existe aqui um bom material em seu argumento, como a própria história da Emilia de Karla Sofía Gascón que poderia, de fato, trazer a questão da representatividade e visibilidade transsexual de maneira louvável, sem visar algoritmos e forçar uma desconstrução apegada à visões superficiais da temática. Além dessa questão, também nos deparamos com as temáticas do remorso e da mudança de discursos que visam apagar um passado sombrio, assuntos de fato relevantes que também sofrem com a falta de esmero no seu desenvolvimento, fazendo parecer que a busca por perdão da protagonista, por seus crimes como chefe de cartel e narcotraficante, apareceu de forma repentina para dar mais temperos à carga dramática da narrativa, o que dificilmente funciona, pois a superficialidade do tal remorso sentido por Emilia não nos cativa, tampouco é capaz de fazer o público sentir pena da personagem e sim estranhar o modo como tudo é facilmente realizado, como sua ONG para procurar corpos das vítimas de seu antigo cartel, ou a exagerada adoração repentina de sua imagem, o que acaba gerando momentos musicais que só reforçam a grande problemática do fetiche europeu nos problemas de países latinos.
Chega a ser lamentável ver que o exímio desempenho dramático de Karla Sofía Gascón e Zoe Saldaña, que evidentemente se esforçam para subverter os problemáticos roteiro e direção de Emilia Pérez, tenha se tornado fruto de uma produção tão controversa. Para Gascón, interpretar Manitas e Emilia talvez tenha sido um episódio desafiador e até corajoso por parte da atriz que, mesmo diante de tantas e cansativas hipérboles escolhidas pela narrativa, consegue passar um momentâneo ar de naturalidade para a sua personagem. Já o antagonismo forçado e nem um pouco convincente de Selena Gomez e Edgar Ramírez, que interpretam respectivamente Jessi, ex-esposa de Manitas, e Gustavo, um mero capanga que surgiu ninguém sabe de onde, são reflexos de uma história que se contenta com excessos e qualquer personalidade clichê de personagens mal desenvolvidos. Para completar, temos aqui uma atuação burlesca de Selena Gomez, desde o seu sotaque estranhamente incrementado até as interpretações espalhafatosas das canções da qual participa, que só reforça a caricatura bisonha da cultura latina pelo ponto de vista francês.
Ofendendo, covardemente mascarado com uma falsa desconstrução, as minorias que pretendia representar, além de retroagir anos de linguagem cinematográfica na frustrada tentativa de se destacar como um musical “revolucionário”, Emilia Pérez é um mar problemas que acabam culminando simplesmente na revolta e ojeriza de seu público alvo.