Poucos cineastas gozam do privilégio de ter o nome associado no imaginário das audiências a um estilo próprio. Parando para pensar, talvez haja cinco ou seis diretores cuja menção fure a bolha da cinefilia e comunique ao público em geral alguma ideia, ainda que vaga, sobre o que eles representam enquanto artistas do cinema. Se isso é verdade, é certo que Steven Spielberg é um deles.
Quando se fala em Spielberg, naturalmente, vêm à lembrança as obras que, a partir da segunda metade da década de 1970, mas com mais ênfase e difusão nas décadas de 1980 e 1990, ultrapassaram as barreiras do cinema em si e se tornaram objetos da cultura popular. Estamos falando, afinal, do diretor de Tubarão (1975), primeiro blockbuster da história de Hollywood, e de sucessos comerciais como a franquia Indiana Jones.
No tocante às obras em si, o cinema de Spielberg é geralmente associado, de um lado, a uma noção de aventuras operísticas – basta pensar em filmes como Jurassic Park (1993), E.T. (1982) ou mesmo o recente Jogador Nº 1 (2018); de outro, figuram os dramas que buscam, em algum grau, uma abordagem mais realista, mas preservam uma carga de heroísmo e romantização – lembrar de O Resgate do Soldado Ryan (1998), A Lista de Schindler (1993) e os mais recentes Ponte dos Espiões (2015) e The Post: A Guerra Secreta (2017). Em todos os casos, independentemente da primeira casca, o que caracteriza a maior parte da produção do diretor é a grande escala dos eventos. Tudo no cinema de Spielberg tem proporções enormes, seja em termos de criação de universo, seja em carga dramática. E então há Encurralado, filme que em 1971 o pôs sob os holofotes da indústria.
De premissa extremamente simples – David (Dennis Weaver) sai de casa pela manhã, pega a estrada para uma reunião de trabalho e passa a ser perseguido por um caminhão – Encurralado talvez seja a obra que melhor atesta a capacidade de Spielberg para se valer das potencialidades do cinema por si só, sem a necessidade de maiores adornos. Som, montagem e decupagem confluem para a criação de uma dinâmica de tensionamento entre corpos específicos em um espaço também específico – trataremos disso adiante –, e é basicamente desses elementos que o diretor precisa para estabelecer e sustentar o tom de enervamento e insolitude do longa por seus 90 minutos.
Muito da eficácia do filme enquanto exploração de uma situação de jogo – protagonista versus antagonista – vem da delimitação de espaços. Spielberg abre a projeção com um plano acoplado ao carro no momento em que ele deixa sua casa. O clima é de segurança e conforto. O rádio dá as notícias dos esportes. A estação seguinte transmite um programa com piadas de relacionamento sobre o “homem da casa versus mulher da casa”. A câmera se posiciona próxima ao motorista sem manifestar qualquer tom de ameaça. As fronteiras com o mundo exterior àquele microcosmo de poder parecem firmes, e quando se chega à estrada em si, fora dos limites da cidade, o horizonte é belo e amplo. Cria-se, a partir de poucos planos, uma noção conservadora e masculinizada – o conteúdo do rádio não me deixa mentir – de paz e harmonia. O protagonista ruma a mais um dia de trabalho sem maiores intercorrências. Ao menos até que o mundo exterior ameaça invadir esse espaço seguro.
A primeira aparição do antagonista já traz consigo um grau de diminuição física do protagonista perante o mundo externo. O caminhão é grande e “inflamável”, conforme assinalado em sua parte traseira; o carro é pequeno e, se antes de ser confrontado parecia aconchegante, vai se tornando opressivamente constrito. Como não poderia deixar de ser, quando o caminhão realiza a primeira investida sobre o carro – uma simples ultrapassagem –, o protagonista não deixa barato. Está estabelecido o embate de masculinidades que daí em diante escalonará e tomará proporções de absurdização.
Esse caráter de Encurralado como, antes de tudo, um filme sobre performances de masculinidade em choque com a emasculação proporcionada pelos conflitos na esfera pública é bem revelado tanto por passagens do roteiro como pelas opções formais do diretor. No texto da obra, a única informação mais relevante que se tem acerca do protagonista, para além de saber-se que ele saiu de casa naquela manhã para atender a uma reunião em outra cidade, é o fato de que, na noite anterior, ele havia brigado com sua esposa porque ela se chateara após ele não a defender da provocação de outro homem. Ainda no início da projeção, pouco após a primeira investida do antagonista, o protagonista para em um posto de gasolina para ligar para sua esposa e desculpar-se por isso. A expressão da cena revela um desconforto físico. Os gestos são vacilantes, a postura é intimidada. Quando finalmente o protagonista encontra uma pose de segurança, apoiando os pés sobre o balcão próximo ao telefone, uma mulher precisa utilizar a passagem que ele obstruíra. Volta-se às posições de desconforto.
Do mesmo modo, quando para em um bar após bater o carro em uma cerca e percebe, pouco depois, que o caminhoneiro também parou, o protagonista se vê conflitado entre permanecer quieto ou tentar identificar e confrontar o antagonista. David, assim como o público, não conhece sua face. Não por acaso, o filme apresenta tanto ao público como ao protagonista apenas as mãos e os pés do adversário. Somente o que o constitui enquanto agente físico mecanizado. A agonia da sequência é encenada por Spielberg a partir de uma perspectiva quase de primeira pessoa como meio para desorientar o espectador junto ao protagonista. Acompanhamos o som dos seus pensamentos e nossa visão é embotada junto à dele. Todas as tentativas de diálogo com os homens que se encontram no bar, nesse momento, são desconcertadas, quase infantis. A diminuição física e moral é patente. O caminhão, então, segue viagem novamente. O protagonista tenta alcançá-lo correndo, despido do seu carro, sem sucesso. Volta-se à estrada, onde reside a única forma de comunicação entre as duas partes. É retomado o duelo performático de força, velocidade e algumas buzinas.
O que torna Encurralado especial, porém, não são seus processos de significação, mas a maneira como, enquanto excelente formalista, mérito que muitas vezes lhe é retirado por quem torce o nariz pra sua obra, Spielberg materializa em tela de modo econômico as questões basais da narrativa. O diretor se vale das especificidades do cinema como expressão visual e sonora para sinalizar, sem necessidade de verborragia, o estofo dramático de um filme à primeira vista menor, de pequena escala.
A partir disso, as ações são concentradas em como explorar, enquanto exercício de cinema voltado ao horror da situação hipotética, aquilo que a premissa possibilita. Nesse sentido o filme, mesmo pautado por uma sucessão de clímaces, é capaz de desenvolver seus 90 minutos sem perder o fôlego. Estabelece-se uma lógica de fases, de ciclos de embate entre protagonista e antagonista que, embora repetida em essência, vai sempre se renovando em sua dimensão física – a mangueira do radiador que falha, a ferrovia que se fecha para o trem passar, a estrada que bifurca etc. – e garante a imersão até o fim.
E o fim não poderia ser outro que não o término do jogo. A resolução final das coisas entre as máquinas e a exultação que isso provoca no homem. Nenhum diálogo; nenhuma troca racional. Apenas o embate de artefatos numa arena pública que parece destinada a isso.