Sempre tive um fascínio peculiar pelo cinema de zumbi. É uma relação ambígua, quase irônica — porque, entre todos os elementos do horror, os zumbis são, de longe, os que mais me causam medo. Mais do que fantasmas, demônios ou vampiros, são os mortos-vivos que verdadeiramente me inquietam. Desde a infância, sua presença me provoca um desconforto visceral, uma angústia difícil de explicar. E, curiosamente, é justamente esse medo que alimenta meu interesse. Existe algo de paradoxal nesse sentimento. O medo, aqui, não afasta — pelo contrário, atrai. Como se o contato com o que me amedronta fosse, também, uma forma de enfrentamento e fascínio. Consumo tudo que envolve o tema: jogos, quadrinhos, literatura e, principalmente, cinema. O zumbi, enquanto figura simbólica, é um reflexo potente do nosso tempo. É corpo em colapso, sociedade em ruína, humanidade esvaziada. Ao mesmo tempo, é um espelho de nós mesmos — consumidos, automatizados, à deriva. Talvez seja por isso que, mesmo me assustando tanto, sigo obcecado por essas narrativas.
O cinema de zumbi consolidou-se, ao longo das décadas, como um subgênero multifacetado — uma espécie de corpo mutante que abriga dentro de si uma diversidade de estilos e discursos. Não se trata mais apenas de filmes de terror. Encontramos zumbis no drama, na ação, na sátira, no suspense e até mesmo no experimental. A figura do morto-vivo, antes mero monstro grotesco, tornou-se um potente símbolo metafórico — uma ferramenta narrativa para discutir política, raça, exclusão social e colapso civilizatório. Um dos marcos fundadores dessa leitura crítica é, sem dúvida, A Noite dos Mortos-Vivos (1968), de George A. Romero. Ao escalar um protagonista negro em plena década de 1960, Romero reconfigura o zumbi como alegoria do racismo estrutural norte-americano. Não à toa, o subgênero sempre se mostrou permeável às angústias de seu tempo — um espelho distorcido (e por isso tão eficaz) da sociedade em crise.
Dito isso, foi com entusiasmo que recebi a notícia do retorno de Extermínio (28 Days Later) às telas. Confesso que não assisti à segunda parte da trilogia, mas sou absolutamente fascinado pelo primeiro filme, dirigido por Danny Boyle e protagonizado por Cillian Murphy. Neste terceiro capítulo, 28 Years Later, a narrativa nos transporta para quase três décadas após o surto do vírus da raiva que devastou o Reino Unido. Agora, a ilha encontra-se isolada do restante do mundo, confinada geograficamente e socialmente. Os sobreviventes vivem em um cenário que remete a uma espécie de nova Idade Média — um retrocesso civilizacional que evoca tanto a ruína tecnológica quanto a regressão moral de uma sociedade sitiada.
Anteriormente, comentei como o cinema de zumbis deixou de ser um território exclusivamente do horror para se tornar um campo fértil de experimentações estéticas e discursivas. Extermínio 3 é um exemplo claro dessa evolução: o longa explora, com sofisticação, uma linguagem que se aproxima do cinema experimental, poético e, em muitos momentos, filosófico. Sob a direção de Danny Boyle — que retorna à franquia após o cultuado primeiro filme —, a obra apresenta uma decupagem que se distancia um pouco thriller apocalíptico anterior. Aqui, Boyle se dedica a construir sentidos não apenas pelo medo, mas pela reflexão moral e social. A câmera não corre apenas com o vírus; ela observa, compara, questiona.

Um dos recursos mais potentes utilizados por Boyle é a montagem paralela, que aproxima os cenários devastados do Reino Unido a imagens que remetem a um imaginário medieval. Essa justaposição não é gratuita: ela escancara o retrocesso vivido por uma sociedade isolada e forçada a reviver o passado como forma de sobrevivência. O apocalipse, portanto, não é apenas viral — é simbólico. É o fim de uma era que nos empurra de volta a estruturas sociais arcaicas, onde a violência, o patriarcado e a moralidade distorcida voltam a reger a ordem.
Nesse contexto, o filme insere dilemas morais densos, como a noção de maioridade precoce. Em uma das subtramas mais impactantes, um garoto de 12 anos é tratado como um homem — não por maturidade, mas por necessidade. A masculinidade é imposta como sobrevivência. Vemos, então, o machismo operando não apenas sobre mulheres, mas sobre os próprios homens: o menino é forçado a provar seu valor diante do pai, a encarnar uma virilidade que o ultrapassa em idade e vivência. Extermínio 3 propõe um cinema que provoca — não só pela tensão de suas imagens, mas pelos questionamentos que levanta. Danny Boyle, mais uma vez, mostra que o terror pode ser veículo para algo maior: um retrato do nosso tempo, das nossas falências e daquilo que insistimos em repetir, mesmo quando tudo ao redor já ruiu.
Extermínio 3 carrega um forte componente poético. Danny Boyle filma o apocalipse com olhos de quem enxerga a tragédia como parte essencial da experiência humana. Há, na forma do filme, uma sensibilidade que remete à tragédia grega, onde o destino parece inescapável e os personagens estão constantemente em confronto com as forças que os atravessam — sejam elas biológicas, sociais ou existenciais. O melodrama, aqui, é uma escolha estética fascinante. Ele está presente na decupagem, mesmo nas cenas de ação, que frequentemente ganham uma estilização marcada por slow motions delicados e impactantes. Boyle dá à violência uma dimensão quase lírica — como se a morte, ao invés de ser apenas fim, fosse também um começo, um lembrete político e poéticoa. Os corpos que tombam diante da câmera não são apenas vítimas do caos, mas testemunhos de uma civilização que insiste em sobreviver.
O longa se estrutura em torno dessa busca pela humanidade — ou, talvez, pela compreensão de que ser humano é também aceitar a finitude. Vida e morte não se opõem; elas caminham lado a lado, o tempo todo. É nesse ponto que Extermínio 3 adentra seu território mais filosófico, e se debruça sobre a ideia de memento mori — lembre-se da morte. A lembrança da finitude, aqui, não paralisa; ao contrário, é o que permite viver com sentido. Porque é diante da morte — e apenas diante dela — que a vida adquire sua urgência, sua densidade e, paradoxalmente, sua beleza. Extermínio – A Evolução me surpreende pela liberdade estética e formal, ao não se limitar à ação ou ao terror, mas explorar o que há de mais interessante no cinema de zumbis: a humanidade.