qui, 28 março 2024

Crítica | Fátima – A História de um Milagre

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A religião possui seus prós e seus contras. Se por um lado a fé sustenta e fundamenta seus fiéis, por outro há uma grande chance de que alguns se transformem em bitolados. É necessário, então, uma maturidade psicológica e uma convicção pessoal forte para manter a razoabilidade dentro desse meio e não deixar-se levar pelo fanatismo de outros. No mundo cinematográfico é possível observar ambos os pólos: 40 Dias – O Milagre da Vida  (Cary Solomon, Chuck Konzelman, 2019) e A Paixão de Cristo (Mel Gibson, 2004) são perfeitos modelos da cegueira religiosa, visto na primeira obra, e do terreno partido até de um certo ceticismo, como no segundo filme citado. Por isso, achar um meio termo é uma missão que exige cuidado, paciência e uma dose de bom senso. Será que o recente Fátima – A História de um Milagre (Marco Pontecorvo, 2020) é capaz de encontrar esse equilíbrio?

Lúcia (Stephanie Gil), prima mais velha de Jacinta (Alejandra Howard) e Francisco (Jorge Lamelas), é uma menina de 10 anos ensinada a ser temente à Deus. Incutido pela mãe, rezar é, para ela – ou para eles -, um hábito. Entretanto, quando contemplam a figura da Virgem Maria (Joana Ribeiro) em pessoa no alto de um monte, suas preces voltam-se para os mandamentos falados pela mesma. E em nenhum deles estava a promessa de discrição total. Rapidamente, o “milagre” ganha a ciência do povo, que, durante uma guerra da proporção da Primeira Guerra Mundial, não via outra opção além de considerar o acontecimento como uma proposta de mudança. A magnitude que tomou o relato dos pastorinhos, porém, não rendeu apenas devotos; Portugal inteiro questionava a veracidade dos fatos contados, incluindo o Governo Português e, principalmente, a Igreja. Ao longo desse tempo, tais indagações alteraram-se para culpabilização, injúria e ameaça, ainda mais destinada a Lúcia e sua confiança de que tudo ali havia sido real. Antes da cidade de Fátima ser um dos âmagos da crença cristã, por conseguinte, as repercussões advindas da aparição da Virgem não foram conduzidas com tranquilidade.

Inseridos nos rudimentos de cada manifestação religiosa, estão interessantes enredos que merecem ser transmutados para a grande mídia. Um deles, a história do porquê Fátima, em Portugal, possui esse nome e qual o motivo de tamanha imponência que faz com que diversos cidadãos ao redor do globo se debulhem em lágrimas ao pisarem no local; é o caso de um sucesso já pronto. Diante disso, um filme sobre o que ocorreu poderia ter uma licença escancarada para discursar sobre a importância da fé e da conexão com o divino, afinal, brindar o triunfo da adoração atual em cima do negativismo no qual a ocasião foi exposta, seria um caminho dentro do script. Em Fátima, no entanto, tal incredulidade é encarada como um tempero para uma narrativa antes delimitada por um olhar unilateral e miraculoso. Ainda que algumas perguntas sejam rechaçadas para Deus e seu poder onipotente – uma das principais é o propósito de três crianças precisarem sofrer tanto, sendo possível para aqueles que dirigem a frase “tende piedade de nós”, poupá-las disso – outras podem soar menos ilógicas. Devido ao tratamento de seus personagens como humanos, o longa-metragem revela a crueldade dos que discordam da fé dos demais.

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É notória a produção elaborada da obra de Pontecorvo, inusitada para projetos de cunho religioso. Pode-se dizer que, independentemente do apelo voltado para o credo da inexplicável graça celestial que escolheu os três pastorinhos como mensageiros, o filme não propõe ser uma verdade absoluta. Por intermédio da entrevista para o livro de Nichols (Harvey Keitel) com a já adulta Lúcia (Sônia Braga), agora freira, são traduzidas concepções compartilhados pelos que levam com afinco o espírito argumentador. O escritor, provavelmente ateu ou agnóstico, transparece uma descrença carregada pela base científica e racional dos dados, contrapostos pela irmã e sua falta de conclusões precisas. Em certo momento, a personagem diz que aquilo era somente seu testemunho, pois ela não seria capaz de explicar tudo. De fato, cabe a mente de cada um interpretar suas respostas como devaneio ou realidade.

Sempre separados fisicamente, Nichols e Lúcia se complementam em suas respostas ao darem o oposto, embora seja frustrante não suprir problemáticas básicas com a chancela de não ter como explicar o inexplicável. Todavia, o que é esclarecido é que a religião não é atestado nem de bom caráter nem de boas intenções. Enquanto a mãe fanática de Lúcia mantém uma insensibilidade pautada no ressentimento com a própria filha por ela ter espalhado algo nem certo nem incerto que envolvia o nome de Deus, o padre da cidade tentava obrigar a menina e seus primos a confessarem o que era uma verdade subjugada. Logo, Fátima demonstra jovialidade em tratar a ultrapassada ideia de santidade dos fiéis, mas ainda assim não se desprende totalmente da visão mais habitual de um milagre ligado ao sacro, com um roteiro que sabe andar no limiar do inofensivo para o campo cético e o espiritualizado. O material está presente, porém não exclui o âmbito divino.

Para auxiliar nessa atmosfera, a trilha sonora traz o som do céu; sempre implicando em uma grandiosidade, mas sem exagero e sem esconder a leveza que uma sonoplastia celestial teria – aliás, o renomado tenor Andrea Bocelli participa de uma canção. Um instante crucial também deixa à vista a simplicidade com que o longa-metragem se dilui: o aparecimento da Virgem Maria é emocionante pela historicidade realizada por si só, sem necessidade de artifícios mais expositivos dos que os que já estão sendo manuseados, como a câmera área em plano aberto e o límpido barulho do vento nas plantas. Fátima desenvolve sua trama desse jeito. Diga-se de passagem, a direção de arte e o figurino reproduziram camponeses reais, com vestimentas surradas e moradias realmente precárias. Além desses elementos, os intérpretes, especialmente Sônia Braga e a jovem Stephanie Gil, duas Lúcias que não perdem sua personalidade, e Harvey Keitel, muitas vezes canal de representação do público.

Fátima – A História de Um Milagre não tem um escopo certo. O longa-metragem, que privilegia, sim, noções de caráter espiritual, não se reduz a um filme simbolicamente religioso. Nele, estão conteúdos enigmáticos acerca dos benefícios e dos malefícios da fé, que, como pode ser observado, só é saudável se souber usá-la. Ainda que não vá longe no quesito inovação ou não dê uma nova cara para a história, a obra é eficaz em não explorar um viés específico, abrangendo e angariando, pois, espectadores de todos os tipos. Até porque, os mistérios envoltos pela credulidade exacerbada destinada a um ser é constantemente alvo de críticas, ponderações, afrontas, inquéritos e, por fim, interesse. Fátima não descreve todos esses movimentos, mas disfarça bem se há alguma intenção de fazer com que o catolicismo obtenha novos adeptos. E talvez a audiência também não assuma uma posição quanto ao fato narrado. O que poderá acontecer é, quem sabe, escavar um pensamento que pode não condizer com os seus.

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