Dizem que homem entende de homem e mulher entende de mulher. Definitivamente, há provas de que os sexos se fragmentam ao lidarem com situações provenientes do próprio gênero; à medida que em Se Beber, Não Case! (Todd Phillips, 2009), o estereótipo masculino de horror ao compromisso amoroso esteja presente, em Orgulho e Preconceito (Joe Wright, 2005) o padronizado modelo feminino de objetivar o casamento acima de tudo também é focalizado. E assim seguem as convenções. Porém, embora seja possível – e necessário – subverter e realocar tais papéis sociais, um deles será para sempre da mulher: o de mãe. Sem problematizar em excesso nem romantizar além do normal, a maternidade é uma atribuição que exige esforço dobrado, e principalmente a descoberta de como viver com outra vida em sua dependência. O Fio Invisível (2021), de Claudia Llosa, carrega esse e outros dilemas em uma produção que canaliza o que há de mais preocupante em ser responsável por alguém.
A adaptação do livro Fever Dream (2014), da co-roteirista do filme Samanta Schweblin, traz, de primeiro momento, Amanda (María Valverde) ferida em meio a uma mata sendo puxada pelo pé. Aos poucos, descobrimos que é David (Emilio Vodanovich) que a arrasta. Dono da voz que faz perguntas para Amanda ao longo da obra, o personagem é filho – ou quase isso – de Carola (Dolores Fonzi), mulher que participará ativamente da história. As duas encontrarão uma na outra uma estranha amizade respaldada no conforto mútuo no que se refere a sensação de estar conectada com suas crias, várias vezes referida com a analogia do título: um “fio invisível”. O espectador participa, então, de uma série de enigmas não necessariamente sobrenaturais, apesar da proposta rodear igualmente pautas abrangendo o misticismo e a paranormalidade. Entretanto, o alvo aqui está na paulatina entrada no subconsciente de duas mães temerosas pelo mal que atinge seus filhos.
Mercantilizado como terror, o longa-metragem pouco se enquadra na categoria. Os famosos jumpscares e os recorrentes clichês do estilo (fantasmas atrás do indivíduo, sensação contínua de inquietação, tensão crescente que deságua em choque, etc.) existem precariamente, visto o rumo contrário que a obra resolveu tomar. Assim classificado por ser mais condizente com o enredo, o drama atiça a curiosidade de quem tenciona o alcance da psique das três figuras principais. Ao passo que David é tido como um mistério que distorce sua verdadeira intenção, em uma linha tênue entre a crença de ser somente uma criança ou uma criação demoníaca; Carlota e Amanda são contrastantes em suas personalidades. Amanda representa a mocinha que ainda acredita na inocência infantil e possui dentro de si um espírito materno voraz, e Carlota retrata o desgosto para com esse encargo. A personagem, que transmite uma desconfiança envolta em tudo que aparenta esconder, cobre-se de um magnetismo que atrai Amanda pela pura vontade de desvendar quem de fato Carola é.
A maneira com que o filme se expõe não é de fácil ingestão. Devido a seu ritmo lento, diferente dos blockbusters que esmiúçam as informações, O Fio Invisível se desenvolve pacientemente em torno do que quer que seja seu discurso. Não é sobre o quão amedrontado o público irá ficar, e sim o quão pensativo ele irá se tornar. Apesar da estratégia já ter sido manuseada por cineastas que recusam a temporalidade habitual, como Charlie Kaufman, aqui a cronologia é trabalhada confusamente. Uma boa feitura das passagens, sejam elas avanços ou retrocessos, dos momentos em que se passa a narrativa, aliado a já boa condução de David – no início, aproximando-se da onipotência – e Amanda, salvaria o pensamento de que são ilógicos alguns instantes. O instantâneo compadecimento da personagem atribuído ao menino, mesmo após os avisos da mãe, soa insensato, e aliando isso às transições temporais secas e sem anúncio prévio, nem no âmbito estético, é difícil situar-se.
Aliás, o três atos que integram a estrutura cinematográfica, esconde suas marcações por conta da vagarosidade em que o filme desenrola – o que não necessariamente ruim. O trabalho por trás dos personagens, particularmente, faz com que os mesmos sejam as atrações que sobressaem o minimalismo exacerbado e até prejudicial da trama. María Valverde e Dolores Fonzi trazem consigo o despertar do interesse do público, que pode buscar pela definição de seu relacionamento e do impacto disso nas mulheres. Ainda que ambíguas, as duas abastecem a obra com a densidade emocional que um thriller psicológico deve conter, juntamente com Emilio Vodanovich e sua existência que oferece à audiência o benefício da dúvida. Simultaneamente às atuações que esbanjam intensidade, a beleza simples do longa-metragem arredonda aspectos cruciais para a experiência de quem vê não seja supérflua.
Recheado de planos detalhes, o projeto de Claudia Llosa, que conta com a fotografia de Oscar Faura, propõe a observação, literalmente, dos detalhes. A câmera estática e a luz tanto vivamente solar quanto pavorosamente escura, utilizando estes recursos em eventos apropriados, reflete o comando seguro da filmagem, que guia os olhares apenas com o visual, dado o pouco uso da trilha sonora. Já o sensorial – o som das folhas, o relinchar dos cavalos, o vento nos orvalhos, etc. – é desafiado durante o longa-metragem, apostando nisso, diga-se de passagem, para enrijecer uma crítica acerca do mau aproveitamento do meio ambiente e seus efeitos para os humanos. Com dois grandes fins, é possível palpitar que este é compreendido da forma mais genuína e inesperada. O outro, da assimilação da dúbia bagagem emocional quando se fala da maternidade e seu sentido, conta com mais assiduidade do espectador.
O Fio Invisível disserta em cima das “obrigações” femininas com um “quê” sobre-humano. Na realidade, a suposta possessão é apenas um adendo para aprofundar a dificuldade que é ser mãe, projetar um futuro para seu filho e, no final, não ter poder de nada. No caso de Carola, nem sobre seu primogênito. Logo, o objetivo inicial é entendido ao decorrer do filme que, fundamentado por ótimas atuações, se preocupa em destrinchar seus personagens minuciosamente. Contudo, a plasticidade funcional do filme pode não cobrir um buraco que um roteiro cronologicamente falho e por vezes irracional e arrastado, deixaria em qualquer obra. A vontade de abordar tópicos ainda não explorados ou desmerecidos, tais quais o do ecossistema e seu uso indevido por seus cuidadores, é válida. Mencionar algo íntimo como o sofrimento de mães e filhos, voltando a atenção para as mulheres, é também louvável. Todavia, seriam esses fatores suficientes para qualificar um falso terror como um filme que não assusta, porém apavora pela empatia com estas questões inusitadas?