Dirigido por Esmir Filho, Homem Com H é uma cinebiografia que mostra as diferentes fases do cantor Ney Matogrosso, desde a sua infância, passando pela juventude e vida adulta. Uma jornada através do tempo, que acompanha um rapaz de origem humilde que quebra preconceitos e se torna um dos maiores artistas de sangue latino.
Aproveitando a onda revitalizada (e, diga-se de passagem, realmente válida) de cinebiografias sobre ícones culturais brasileiros, a Paris Entretenimento/Paris Filmes resolveu desta vez investir na adaptação dramática da vida e obra de um artista que, felizmente, está entre nós, não apenas para garantir uma boa consultoria criativa para a produção fílmica, mas para prestigiar o resultado, deveras bonito e necessário, que saúda toda a sua história, irreverência e, principalmente, apreço pela arte de ser e viver a própria fantasia. Ney Matogrosso, um dos maiores intérpretes da música brasileira e verdadeiro ícone da junção entre música e teatro, não é mostrado como uma divindade ou um ser imortal longe de imperfeições e dotado do mais puro talento – por mais que o roteiro de Esmir Filho cometa alguns deslizes de caminho que conduziriam a narrativa para tal ruína popular que enfeia obras cinematográficas baseadas em artistas renomados -, e sim de uma maneira direta e repleta de sinceridade, como uma pessoa de fases, ideias e atitudes, que deseja deixar sua marca como artista para a posterioridade, não hesitando em ter que enfrentar, mesmo sozinho, censuras e críticas constantes que pretendem ofuscar seu brilho.
Há uma curiosa ousadia ao representar nas telas de cinema toda a arte e irreverência que Ney Matogrosso inspira e transpira nos seus mais de 50 anos de carreira. Homem Com H intercala a imagem e desenvoltura cinematográfica com as técnicas de artes cênicas sempre valorizadas pelo artista no palco em sequências diferenciadas que reproduzem suas performances ao vivo. Esmir Filho não esconde sua admiração por Ney, desejando ser fiel à história do músico em cada etapa de sua vida, por mais que isso torne a narrativa do longa-metragem um tanto apressada no final do segundo ato para o início do terceiro. No entanto, é perceptível a funcionalidade da feliz amálgama entre o tributo na visão do fã decido em prestar uma bela homenagem ao artista e o olhar cinematográfico do diretor e roteirista, que acaba por entregar uma obra que consegue driblar armadilhas narrativas que tornam cinebiografias produtos “mais do mesmo” com um belo uso da imagem e uma condução que exalta o exímio trabalho de Jesuíta Barbosa.

Pernambucano, nascido na cidade de Salgueiro, Jesuíta Barbosa já se consagrou como um dos mais promissores atores da modernidade desde o seu primeiro grande sucesso, Tatuagem (2013) de Hilton Lacerda. Em Homem Com H, o jovem artista abraça fortemente a personalidade e o estilo de Ney Matogrosso, encarnando o cantor de uma maneira visceral, atribuindo ainda à sua performance uma carga dramática que exige de toda a sua experiência como ator, comprovando que Barbosa não está ali somente para reproduzir os trejeitos de Ney (o que, devemos afirmar, Jesuíta também o faz muito bem), mas, tal como o próprio, ser o interprete de sua arte e viver sua própria fantasia.
Homem Com H dispõe de um elenco inspirado e que parece estar confortavelmente se divertindo e se emocionando com a produção. Rômulo Braga dá vida a Antônio Matogrosso Pereira, pai rígido e preconceituoso de Ney que, mais tarde, reconhece o talento do filho e se arrepende de seus atos, enquanto a renomada atriz pernambucana Hermila Guedes interpreta Beita, mãe do artista, com suavidade e simpatia. O filme também dispõe de nomes promissores, como Jullio Reis, visceral na interpretação de Cazuza, Lara Tremoroux, que possui pouco tempo de tela e, mesmo assim, brilha como Regina Chaves, e Bruno Montaleone, como Marco de Maria, companheiro de Ney que passou 13 anos ao lado dele, vindo a falecer em decorrência do vírus da AIDS.
Seguindo uma narrativa convencional, na qual o storytelling se preocupa com a trajetória do artista desde o início, Homem Com H se inicia com a infância conturbada de Ney de Souza Pereira com seu rígido pai militar e agressões sofridas ao longo de sua juventude, até ele finalmente sair de casa para servir ao exército brasileiro e, posteriormente, dedicar-se a aulas de canto, onde foi descoberto como um exímio intérprete, até integrar à banda Secos e Molhados, onde ele pôde mostrar toda a sua habilidade artística, sem medo de repressões. Por mais que fosse interessante uma exploração da curta passagem do artista na banda que o consagrou como uma das figuras mais emblemáticas da cultura brasileira, Esmir Filho optou por não exatamente aprofundar no conjunto, deixando claro que o filme é sobre a trajetória do artista e não sobre os projetos da qual ele participou. A vida plural de Ney Matogrosso é abordada de forma constantemente movimentada, nao deixando de lado suas raízes e influências – há, inclusive, um curioso contato entre Ney e a natureza selvagem ao seu redor, o que faz ele se considerar bicho quando leva ao palco essa vindoura influência -. No terceiro ato, a narrativa cede um espaço maior para o drama vivido pelo artista e seus grandes amores (Cazuza e Marco de Maria) durante a epidemia da HIV, na qual Ney também perdeu muitos amigos.

É perceptível que a edição do filme, sob a responsabilidade de Germano de Oliveira, tenha enfrentado um árduo trabalho em reunir tantas informações sobre o artista e decupá-las em 2 horas e 9 minutos de filme. Existe aqui o uso de passagens rápidas e cortes bruscos, porém necessários para reunir uma grande quantidade de material filmado, que também não desacelera, nem torna exacerbadamente frenético o ritmo do longa-metragem. A fotografia do longa-metragem favorece luzes e cores, além de captar com enquadramentos e planos criativos as performances do artista e reproduzir com fidelidade momentos icônicos, como a primeira transmissão televisiva dos Secos e Molhados ao som de “Sangue Latino” e o processo de criação da clássica capa do primeiro disco da banda.
Homem Com H se consagra com uma cinebiografia fiel tanto ao artista que está sendo homenageado quanto para o público, que recebe exatamente o que o longa promete. Irreverente na medida certa, repleto de vida, arte e da ousadia que fez Ney Matogrosso romper tabús e se destacar em um período tão sombrio da história do Brasil, o filme sobre o renomado artista fala exatamente sobre a liberdade que ele tanto lutou para conquistar, exaltando, com muito carinho e respeito, como ele bota seu bloco na rua.