dom, 22 dezembro 2024

Crítica l Amor, Sublime Amor (2021)

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Embora os musicais pertençam a um gênero que se funde à idealização sem necessidade de auxílio, até nestes o amor possui sua ambivalência. Por mais que alguns tratem dessa contrariedade como a raiz para uma melhor compreensão dos apaixonados – quem não se lembra de Sandy (Olivia Newton-John) e Danny (John Travolta), de Grease (1978), abraçando suas diferenças em “You’re The One That I Want”? -, os mais pessimistas lidam com o sentimento de maneira cética; Os Miseráveis (2012) pode representar os filmes musicais que trazem a face crítica de se amar alguém. E se há alguém do meio artístico que mergulhou profundamente nos dilemas do ato, este ser chama-se William Shakespeare. E, dessa mesma nascente, no cinema, saíram Hamlet (1996); 10 Coisas que Eu Odeio em Você (1999); Romeu e Julieta (1968); Amor, Sublime Amor (1961) etc. Este último, aliás, conquistou tanto interesse que até o aclamado diretor Steven Spielberg quis reencenar. Em 2021,então, foi dada a ele a chance de contar novamente a história que carimbou nos 60 a presença de mais um musical grandioso, atraente e relevante.

Em 1957, no bairro Upper West Side, em Nova York, duas gangues desejam marcar território por meio da força bruta. Porém, o que não sabiam os inimigos Jets, nativos dos Estados Unidos, e Sharks, os porto-riquenhos, é que um representante de cada iria mesclar essa configuração. Tony (Ansel Elgort), ex-Jet, e Maria (Rachel Zegler), que está de casamento marcado e é irmã do líder dos Sharks, se conhecem em um baile e concebem um amor que desafia o afastamento e o ódio entre estes dois mundos opostos, causando, obviamente, um alvoroço em suas hierarquias. É por um caminho melódico que o destrinchar dessa trama toma forma – por mais que não exista leveza alguma em sua teoria. 

O Amor, Sublime Amor de 2021, de fato, é ambientado e vivido na década de 50. À moda antiga, o filme não se desgarra totalmente de seu primogênito na parte da ampla gama da cenografia e adjacentes. Não só os figurinos fidedignamente semelhantes àqueles tempos e os objetos cênicos vintage reproduzem a conservação da obra no período original, como também sua trilha sonora, que com frequência retrocede o pensamento do espectador e o leva para o Upper West Side de 1957 sob a ótica de 1961. O jazz, com seus instrumentos de sopro característicos (como o saxofone) e com o ritmo marcado pelo som da bateria, dita a maior parte do o que se ouve, canta e conta na trama. As músicas, ao invés de serem unidades autônomas, são somente extensões do estilo de melodia regente; acompanhando o tom imposto pelo curso natural da narrativa, tal contribuição serve para situamo-nos dentro do universo ali criado, tornando, assim, a harmonia entre o jazz e os ritmos latinos um grande personagem. A tendência de certos musicais atuais de darem predileção à canções de hype pop – Cinderela (2021) é um perfeito exemplo – não são obedecidas aqui, dado que, na época, o cinema não era embalado pelo gênero. 

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Lidando com o longa-metragem discutido de forma independente, algumas cenas que fizeram do trabalho de Jerome Robbins e Robert Wise em 1961 um clássico atemporal – a encenação da música “America” e de “Tonight”, a sequência de abertura, etc. – transpuseram uma pressão quase inalcançável para sua versão recente. E, quanto mais as expectativas ultrapassam o nível do atingível, maior a decepção caso o esperado não ocorra. Agora, se visto no papel de emancipado, o filme traz a renovação trazido do fator moderno, em que a facilidade de movimentar uma câmera e o conhecimento mais aprimorado do que uma direção de fotografia é capaz de dizer, dão ao tecnicismo um valor inestimável. A cena inicial (mais curta) é uma amostra das coreografias bem marcadas, seja nos eventos musicais ou no gestual dos intérpretes, e da maneira menos prolixa de manejar a história que permeará por todo seu resto. 

Contudo, devido a escolha de ressaltar o romance de Maria e Tony com um desenvolvimento paciente e esmiuçado, os dois primeiros atos de Amor, Sublime Amor fazem questão de remeter ao filme primário em uma lentidão análoga. Porém, os expressivos adicionais do século 21 estão no mérito de incrementar à xenofobia que sofrem os porto-riquenhos um peso de criminalidade. Concomitantemente ao amor tocante, mas apressado, dos dois protagonistas, está uma luta que, apesar de não justificar todos os seus atos, transforma em entendível a rebelião dos Sharks contra os Jets. A tentativa de humanizar o líder deles – e talvez o mais sádico -, Riff (Mike Faist), então, não é tão eficaz; notavelmente, tomba apenas para um lado a regalia da escuta. Igualmente na área das mudanças causadas pela contemporaneidade, está um personagem sem nome, feito por Iris Menas, que deseja agrupar-se a gangue dos causianos de Nova York. Ainda que exista essa vontade, o jovem é trans, razão máxima para sua exclusão não só dos Jets, mas também da sociedade. Seu deslocamento possui dois possíveis sentidos: a indispensabilidade de ter uma figura que dedique sua presença ao contexto de 2021, ou o intuito de fazer de sua “falta de propósito” na obra, uma crítica a seu rechaçamento até no coletivo vigente. Fora ele, Anita (Ariana DeBose) e Bernardo (Davi Alvarez) dão corpo e forma aos porto-riquenhos e suas adversidades, essencialmente Anita e sua condição de mulher negra.

Incontestavelmente, Steven Spielberg tem dedo nisto. Diretor de obras antológicas como E.T – O Extraterrestre (1982) e A Lista de Schindler (1993), Spielberg é um incansável provador de sua versatilidade. Sua filmografia falaria por si só se houvesse um símbolo do gênero musical, mas, como não há, o cineasta resolveu aventurar-se em um campo por ele desconhecido. Posto que o longa-metragem de 1961 é tido como uma referência cinematográfica, o exemplar dirigido pelo artista não só apresenta Amor, Sublime Amor para uma geração recém-nascida; o filme adquire dimensões que o levam para uma esfera de produção perto do irretocável. A fotografia de Janusz Kaminski afilia-se oferecendo uma estética mais organizada e em tons de marrom para os Jets, e mais calorosa, vibrante e amontoada para os latinos do Sharks, porém nenhum elemento imagético, por mais aprimorado que seja, teria um desempenho tão coeso se não tivesse uma direção ao mesmo tempo que calculada, sensível, para colocá-los em suas devidas posições. Logo, os deslizamentos suaves de uma câmera leve como uma pluma, a névoa amena que rodeia principalmente os encontros dos amantes Tony e Maria , a consciência social latente, dentre outros, possuem seus lugares dentro de um Spielberg que manifesta uma ode aos musicais e à diversidade.

Aquele Amor, Sublime Amor indicado para 11 prêmios Oscar é revivido por Steven Spielberg de forma saudosista, meticulosa e tão grandiosa quanto seu incipiente da década de 60. Ao integrar à trágica fábula inspirada em Romeu e Julieta um conteúdo preocupado com a cultura estadunidense de preconceito para com os imigrantes e ao zelar por noções tolerantes acerca dos desafios destes povos, o filme extrapola as amarras de um simples romance entre um garoto rebelde e uma menina estrangeira. Na verdade, embora arrastado em certos instantes, o longa-metragem visa ir além, através de melodias e canções refeitas com um sentimentalismo proposital, do muro que separa gente de gente. Se em 61 a dramaticidade da obra concentrava-se essencialmente nos embates dos Jets versus Sharks e no sucesso de Tony e Maria, em 2021 isto continua não estando em segundo plano, mas é observado uma questão acima destas citadas: a austeridade de quem sente-se superior pautando somente a diferença dos demais. É por meio das cores, da câmera flutuante, dos planos sequência, do ordenado aparecimento de cada artifício narrativo e visual, e de uma direção sem precedente que esta fala é afirmada, confirmada e atestada. Visto isso, é de árdua contestação a necessidade de um Amor, Sublime Amor em um período em que a vida é olhar para as distinções por uma óptica de segregação. Será o musical uma via de Steven Spielberg se rebelar contra os malefícios da principal nação que fez de seus filmes blockbusters?

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