dom, 22 dezembro 2024

Crítica | Os Olhos de Tammy Faye

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“Nenhum de nós conhece a Deus, até que alguém nos apresenta.” já dizia Pi, um crédulo e fervoroso entusiasta da fé no icônico As Aventuras de Pi (2012). Com base na frase acima, é natural que se compreenda a entrada em qualquer religião como algo induzido por terceiros, sendo estes sem denominações específicas; um estudante, por exemplo, foi capaz de introduzir um cético ao mundo religioso (ou pelo menos lhe conceder o benefício da dúvida acerca da veracidade do sustento deste), em Deus Não Está Morto (2014).  Por isso, o televangelismo – pregações cristãs ou protestantes por meio de mídias radiofônicas ou majoritariamente televisivas – prosperou tanto, visto seu local de criação, os Estados Unidos, um país apreciador da TV em si, ainda mais quando a mesma era a principal responsável por difundir e selecionar os pensamentos destinados a uma massa pouco criteriosa. E é rondando esse pretexto que Tammy Faye Bakker e Jim Bakker, nos anos 70 e 80, construíram uma potência no ramo: Os Olhos de Tammy Faye (2021), de Michael Showalter, balanceia a imagem de celebridades e criminosos de dois dos pastores mais notórios da América.

Desde a infância, Tammy Faye (Jessica Chastain) tem Deus como membro ativo de sua família. Após chegar à conclusão de que seguiria a Bíblia, a personagem, na universidade, conhece Jim Bakker (Andrew Garfield), que desde muito jovem dedicou a vida a difundir o sacro em seus discursos de proselitismo. Unidos pela mesma intencionalidade, os dois iniciam suas jornadas de pregação, no início, em pequenas igrejas. Porém, logo veem no aparelho de televisão, muito popular na época, um canal certeiro para atingir -e converter – novos adeptos. Devido ao sucesso na passagem para a mídia do momento, o casal, mais tarde, funda a maior emissora religiosa norte-americana, a PTL, assistida por uma grande audiência, e tornam-se o que hoje é equivalente ao trabalho dos “influenciadores”. Entretanto, tal construção midiática revela que não é impermeável; escândalos sexuais, desvios de verba e estelionatos foram capazes de abalar profundamente a instalação antes confortável de Tammy e Jim como venerados pelo povo.

Não se colocando no papel de argumentador em cima dos ensinamentos da Bíblia nem de investigador sobre o que pode ser um fato ou uma mentira, excluindo, logo, o caráter cientificamente coerente do púlpito da narrativa, o filme acredita em seu potencial de não discutir. Isso porque o foco não está voltado para o que realmente a escritura diz, e sim para como aquelas palavras soam em ouvidos necessitados de uma dose de esperança. O agarramento na figura de um Deus milagroso, assim manejado durante todo o longa-metragem, possui uma expressividade duplamente reforçada pela oratória implacável de Jim e o carisma sempre contagiante de Tammy. Neles, os fiéis encontravam a personificação das lições deixadas por Jesus, e, os protagonistas, por sua vez, supunham piamente que seus programas, com fantoches e cantorias de Tammy incluídos, cumpriam a missão de implementar a doutrina cristã no habitual da população. Embora o pontapé encetasse da legítima vontade de espalhar os versículos e salmos pertencidos a Jesus e suas noções de amor ao próximo, o televangelismo se transmutou para sinônimo de desonestidade e intolerância.

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Searchlight Pictures/ Distribuição

Para chegar em um ponto tão extremo, a trajetória de Tammy e Jim flutua pelo puro sentimento de elevar Deus a quem não o conhece – e até certo ponto seus estilos de vida condiziam com dois indivíduos cristãs que escolheram viver adorando e seguindo o divino -, e culminou na aderência a tentações mundanas. No primeiro e segundo ato, o que observa-se é um quase encantamento por trás da opção de existência inicial, onde a idealização dos dizeres da Bíblia pareciam fazer do real, algo leve e cheio de sentido. A ingenuidade com que o casal cria o programa na TV, ainda com intenções altruístas, fortifica o porquê dos norte-americanos comprarem as ideias verossímeis dos pastores; todavia, indo de encontro com tudo que proferiram, Tammy, e, em especial, seu marido Jim, se deixaram levar pelos pecados. Na obra, a ascensão que ambos, em suas profissões, vidas sociais e pessoais, vivenciam, por vezes tão superficiais quanto os falsos seguidores do Senhor, é proporcional a gradativa queda. É apenas neste segundo lado que é exposta a humanidade presente nos personagens e a ação desse estado sob provocações terrenas, tais quais o dinheiro, o luxo e o poder.

A espetacularização, recorrente a partir de uma das primeiras cenas de Os Olhos de Tammy Faye, acompanha a fórmula do sucesso das transmissões televisivas de Jim e Tammy, que forjam certos sentimentos para gerarem a empatia, a comoção e a fixação da ideia de um Senhor milagroso e salvador. Obviamente, em prol das doações para o canal. Apesar da superficialidade no temperamento dos personagens e nas circunstâncias se alongarem, quando as crenças falsas e a má fé são postas à prova, voltamos ao complexo contemporâneo de pastores desviantes do verdadeiro rumo que um credo saudável leva. Como consequência, os processos de desvio de capital da PTL e o enriquecimento dos Bakkers são analisados e expandem-se para algo sumo. 

Ainda que tenham posicionamentos distintos, Jim e Tammy degradam-se juntamente com seu triunfo presumidamente duradouro. Enquanto Tammy se mantém firme no propósito de carregar consigo a palavra de Deus, transmitindo-a com sua simpatia característica, Jim pensa também no retorno monetário. O alvoroço em torno dos acontecimentos os envolvendo, contudo, leva a ambiguidade como motivação para suas atitudes: Tammy, independente de sua temência aos bons costumes celestiais, usufrui da extravagância que apenas o dinheiro compra; já Jim, aciona uma perplexidade coletiva ao sucumbir aos prazeres carnais. Ademais, além de demonstrar os erros humanísticos do casal, que tomaram uma proporção indecente, o longa-metragem remexe tópicos como o boom da Aids e o preconceito da comunidade cristã para com o homossexualismo, utilizando Tammy e sua personalidade bem formada como mediadora de um episódio de seu programa com um convidado pastor e gay. Sendo mais um caso chocante, Os Olhos de Tammy Faye dá voz a face que realmente ama e respeita o próximo, de sua protagonista.

Searchlight Pictures/ Distribuição

Jessica Chastain – vencedora do Oscar por seu papel no filme – vive a caricatura como se fosse sua. O trabalho de caracterização moldado por Linda Dowds, Stephanie Ingram e Justin Raleigh – que levaram o Oscar de melhor maquiagem também -, é hábil o suficiente para não retirar a essência da verdadeira Tammy Faye Bakker. O exagero, as cores vibrantes e a maquiagem igualmente excêntrica auxiliaram Chastain na missão de dar um rosto e um corpo para uma personalidade que convertia-se em um ser humano dócil e perpetuamente contente na frente das câmeras, mas turbulenta quando sai de sua lente. Isso, a atriz alcança com louvor. Jim, interpretado brilhantemente por Andrew Garfield, encarna o personagem visivelmente mais falho, porém de uma lábia, quase populista, que convence sem esforço, porém com um caráter ambíguo. 

Dando ordem a uma história de auge e putrefação, Michael Showalter revive o clima oitentista em todos os cenários, composto por uma direção de arte certeira na elaboração das locações, suas cores e texturas. Deste mesmo modo, a transição para os anos 70 e 90 não perde as singularidades das próprias épocas, retratadas meticulosamente. Nos instantes de riqueza evidente da família de Jim e Tammy, saltam-se plumas, pelos e paredes e relógios dourados reluzentes, contradizendo o discurso de que “somos feitos apenas de barro”, em palavras de Tammy. O exotismo dos detalhes, aliás, reformulam a concepção de que nada, para eles, é preciso senão a adoração ao Senhor. Por isso, o roteiro – que ainda dá uma sutileza à personagem de Chastain que talvez iniba a potencialização de sua dualidade -, caminha pela sensibilidade e pela abertura de interpretação do espectador, agraciado por um “quê” televisivo na montagem, permitindo ter imagens de entrevistas – feitas com estilização da época – dentro dos canais ou fora, atribuindo uma espécie de documentário.

Os Olhos de Tammy Faye contempla a polêmica relação da comunicação de grande mídia e a religião. Qual o limite para uma conversão espiritual via tecnologia visual? Será isso um perigo caso não se saiba a procedência e o objetivo de quem prega? Pode acontecer uma lavagem cerebral para aqueles já frágeis psicologicamente? O que deve ser seguido? Quem deve ser seguido? São infindáveis perguntas que o filme, ao passo que “leve” um pouco além da conta, promove no tópico fé e religiosidade. Por intermédio de grandes interpretações, fazendo-nos duvidar do que é certo ou errado, o longa-metragem vai mais longe por retratar a modernidade de uma convicção que atualmente é quase uma norma, tais quais a igualdade feminina, a aceitação dos dependentes químicos e da comunidade LGBTQIA+, como corajosamente defende Tammy. Ou seja, não é somente sobre Deus, suas magnificências e sua legião de admiradores. É mais, na verdade, sobre humanos que erram no meio da busca pela santidade.

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