Seria ingenuidade não considerar que Parasita exerceu um forte impacto sobre as narrativas construídas em torno de discursos sobre as lutas de classe e o capitalismo tardio. Não que não houvesse produções que tratassem do assunto anteriormente (o próprio Bong Joon-ho é exemplo disso), mas o caso da família que vivia no porão da casa rica possui um apelo metanarrativo que fundamentou produções ao redor do mundo. Compreendendo que tal linguagem agrada — o gênero cinematográfico sempre foi um meio instigante para tratar de certas questões — Parasita ainda rende subprodutos extraoficiais nas plataformas de streaming, e esse é o caso de Meus 84m², de Kim Tae-joon.
Disponível na Netflix, a premissa do filme é simples: um jovem recém-separado, que “raspou suas economias”, começa a ouvir barulhos constantes em seu apartamento, assim como seus vizinhos, e, inesperadamente, torna-se o principal suspeito pela produção desses sons através das paredes do prédio. O filme já estabelece, em seus primeiros minutos, o universo em que se inscreve: o da crise imobiliária, dos investimentos arriscados nas bolsas de valores e do endividamento em cascata. São assuntos caros ao contemporâneo, que percebe no capitalismo seu próprio “som nas paredes”.
Nada no filme é muito sutil em termos de crítica — e nem deseja ser, já que estamos falando de uma narrativa palatável dentro de uma plataforma. Mas é eficaz observar como a ideia de reviravolta se torna vazia nas mãos de um diretor que trata, sem tanta habilidade, cada ponto alto da narrativa. Se a revelação do verdadeiro culpado se torna óbvia, é justamente pelo trabalho simplório realizado na construção dos personagens.
De forma mais clara: não há problema em tratar personagens como arquétipos de um discurso. O problema surge quando esse mesmo discurso perde sua efetividade pela dificuldade em se construir uma narrativa causal. Em outros termos, a sucessão de “situações” (como podemos chamar os pontos de virada da trama) acontece muito mais pela necessidade de provocar alguma reação surpreendente no público do que por um real esforço em descosturar o novelo proposto.
Ou seja: o filme, cuja linguagem já evidencia sua insipiência, reforça esse traço ao adotar as facilidades de uma narrativa feita num tempo histórico em que a atenção ao conteúdo é baixa. Os movimentos de câmera sem propósito, os cortes rápidos, as transições “estimulantes” que poderiam render um bom clipe para redes sociais, tudo isso compõe a própria linguagem sociopolítica que o filme deseja criticar.
E, mesmo que desconsiderássemos o quanto o filme se alimenta da estética do capitalismo tardio em sua forma, ele ainda seria pueril tanto na maneira como filma a saga sisífica de seu protagonista quanto na condução da história até o final. Quando, ao término, tudo é revelado por vilões que confessam seus planos um ao outro (ingenuidade ou inabilidade?), o protagonista profere uma frase de efeito que, em um filme que se levasse menos a sério, talvez tivesse algum impacto. Aqui, contudo, é apenas a constatação do quanto é risível a forma que o filme assume para si.
Entre tantas lições que poderiam ser extraídas do clássico imediato de Bong Joon-ho, Kim Tae-joon opta pela superfície: a crítica social. E, como tudo o que é superficial brilha, o diretor de Meus 84m² abandona qualquer noção de mise-en-scène e roteiro em nome do que o filme tem a dizer. Eis o grande mal tão bem explorado pelo neoliberalismo: a ilusão de que o tema é mais importante que a forma. Enquanto essa máxima for tomada como verdadeira, mais produtos como esse continuarão a ser produzidos e despejados em plataformas de streaming que, por sua vez, têm profundo interesse na aparência do discurso progressista.