Lidar com um gênero cinematográfico já tão explorado e presente no imaginário das audiências como a comédia romântica pode ser uma faca de dois gumes. De um lado, a adesão a uma tradição bem definida de filmes traz consigo a previsibilidade quanto aos códigos e convenções utilizados, tornando mais fácil o caminho percorrido pela obra para dialogar com o espectador. De outro, há sempre o risco de se deixar seduzir demais por esse lugar confortável da familiaridade e chegar a um resultado genérico, despido de alma própria. Missão Cupido, escrito e dirigido por Rodrigo Bittencourt, é um bom exemplo de filme que tenta se valer da primeira tendência sem cair na armadilha da segunda e ora consegue, ora não.
A história contada por Bittencourt centra-se em Miguel (Lucas Salles), que morre ainda jovem em um acidente de trânsito e se torna um anjo da guarda atrapalhado e reticente em seguir as regras do ofício. Designado para tutelar Rita (Isabella Santoni), ele, sem saber da extensão dos seus poderes, profetiza que ela jamais encontrará um amor. Anos depois, ciente de que a Morte (Agatha Moreira) pretende conquistar Rita e levá-la consigo, Deus (Rafael Infante) ordena que Miguel, com a ajuda do arcanjo Rafael (Victor Lamoglia), desça à Terra para salvar sua protegida e encerrar os efeitos da profecia.
Se a leitura das premissas do enredo já permite concluir sem maiores dificuldades quais serão os rumos seguidos, é porque Bittencourt não faz nenhuma questão de escondê-lo. O texto de Missão Cupido, ressalvado o recurso ao elemento sobrenatural mais como dado de curiosidade do que qualquer outra coisa, não visa a apresentar qualquer subversão ao gênero. Em seu núcleo, trata-se de uma história de amor sem maiores pretensões, marcada pela presença de heróis e vilões bem estabelecidos, eventos que se sucedem como entraves a serem superados para que os personagens cheguem à glória final e um desfecho tranquilizadoramente previsível.
O que tira Missão Cupido da vala comum dos filmes do gênero é muito mais o “como” a história é contada do que propriamente o “o quê”. Bittencourt lança mão de uma quadrinização dos eventos como dispositivo que guia a obra. Todo o percurso da narrativa é exposto como sendo orientado, numa lógica de cartum, por uma consciência superior que traça o destino dos personagens – o Deus personificado por Rafael Infante, no caso.
A opção por esse dispositivo traz efeitos tanto dramáticos como estéticos. Dramáticos porque a presença dessa consciência que paira acima da história retira muito do peso envolvido nos eventos. Se aquilo a que se assiste é exposto como algo controlado externamente, não é dado ao espectador muito com o que se preocupar. E essa descarga de peso, por assim dizer, é vantajosa ao filme, que abraça um ar de despretensão e frescor bem adequado à leveza do seu material-base.
É na estética, porém, que o recurso à quadrinização traz os maiores impactos e dota a obra de Bittencourt de face própria. Se há algum elemento pelo qual Missão Cupido se faz digno de lembrança, é sem dúvida a maneira como o diretor parece se divertir de modo até um pouco caótico com as possibilidades abertas pela estética cartunesca. O humor gráfico e a forma como o filme articula pontos de contato entre diegese e extradiegese, aliás, são muito mais inspirados do que as tentativas de humor falado. Sequências de animação gamificada são intercaladas com cenas em preto e branco. Uma iconografia assumidamente caricatural convive lado a lado com as cenas “realistas” do cotidiano, tudo com um senso de descompromisso que torna a sessão prazerosa em diversas passagens.
Em nenhum momento, aliás, o diretor almeja fazer de Missão Cupido algo além de um feel good movie, e a priori não haveria nada de errado nisso. O problema, aqui, é que o texto, além de muito básico, parece não embarcar na mesma lógica adotada na estética. Se na forma o filme de Bittencourt tem uma face singular, o mesmo não pode ser dito quanto ao roteiro, que parece gerado automaticamente por algum algoritmo. Tiques dos produtos mais saturados do gênero, como a insistência em piadas sem graça e fora de tom a cada minuto, acabam sabotando as possibilidades da obra. O texto soa até um pouco esquizofrênico em suas intenções de humor. Enquanto parte das linhas busca um apelo infantilizado – personagens que fazem careta pelas costas dos “inimigos”, por exemplo –, outra parte tenta um efeito mais voltado ao público adulto – a insistência em piadas envolvendo sexo e clichês datados como relacionar o Brasil à corrupção é particularmente irritante.
O resultado é um filme desequilibrado e que deixa a impressão de ter sido mais prazerosamente dirigido do que escrito. É como se Bittencourt tivesse partido de uma inspiração para a encenação e, somente após isso, concebido um texto qualquer no piloto automático, apenas como desculpa para que sua obra pudesse existir. Missão Cupido acaba se fazendo sentir, estranhamente, a um só tempo fresco e envelhecido, inspirado e preguiçoso, possibilitador e limitado.