sex, 29 março 2024

Crítica | Noites de Alface (2021)

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Noites de Alface é um caso interessante de um microuniverso que lentamente expõe suas camadas e intenções para o espectador sem nunca abandonar o tom estabelecido no início. O longa, adaptado para as telas pelo diretor Zeca Ferreira a partir do livro homônimo de Vanessa Bárbara, assume um esquema estético que quase remete a um teatro minimalista – da composição dos cenários ao tom meio ingênuo e artificial das atuações. 

A trama gira em torno de um casal de terceira idade, Ada e Otto, vividos por Marieta Severo e Everaldo Pontes, que vive num pacato vilarejo com uma rotina de chás, cartas, quebra-cabeças, quermesses e conversas com a vizinhança. Um acontecimento abrupto, no entanto, acaba colocando um deles num emaranhado de mistérios envolvendo outras pessoas daquele povoado. 

Eis, então, um trabalho de progressão contida, que vai do drama doméstico ao filme de crime, expandindo os pontos de vista da história e revelando acontecimentos de modo gradativamente menos linear. E, apesar de algumas das proposições temáticas ficarem claras desde as primeiras cenas (especialmente das aparentes mudanças de luz), o longa de Zeca Ferreira busca inverter constantemente os principais encaminhamentos da narrativa, tal como o protagonismo dela (seria o filme contado pelo ponto de vista de Ada ou de Otto?).

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O que Noites de Alface tem de realmente curioso nessa sutil mescla de tradições de gêneros é o rigor e a constância de sua atmosfera inofensiva. Mesmo que roteiro e direção estejam sempre flertando com a estranheza, com enigmas, com a economia de informações, e pareçam sempre brincar com a cronologia dos fatos, o filme não possui qualquer ruptura formal/estrutural que coloque sua encenação e sua trama em cheque e, assim, surpreenda o público verdadeiramente. A proposta é nitidamente nunca se desvencilhar da delicadeza, da poesia e da singeleza daquelas relações e daquele espaço, ainda que os mesmos possam esconder seus elementos obscuros. 

Mas, a César o que é de César, Noites de Alface não está interessado em evidenciar essa dicotomia entre a aparente pacificidade de um punhado de pessoas e suas mazelas veladas. Zeca Ferreira se preocupa mais em materializar a ficção de um dos personagens e o fato de encenar tudo num registro contínuo, concreto e inabalável leva  realidade e fantasia a se misturarem quase que por completo. E é particularmente muito boa essa ideia de transformar em parte crucial da narrativa o que poderia ser só um jogo de projeções psicológicas repetitivas.

Como consequência dessas escolhas, infelizmente fica faltando pouco espaço para um mergulho emocional ou psicológico autêntico em qualquer um desses personagens – e mais ainda uma brincadeira com os sentidos. Marieta Severo encontra um equilíbrio funcional entre a teatralidade de seu parceiro de cena Everaldo Pontes – que se entrega bem ao tom mais declamatório – mas as conversas entre eles nunca realmente registram nuances além do texto recitado. Aliás, os coadjuvantes, que poderiam até operar como caricaturas divertidas envoltas nesse mistério, também parecem circundar o roteiro sem nunca pertencer realmente ao drama, mesmo que vez ou outra tentem emular uma intensidade (sem sucesso).

Ao final, quando o quebra-cabeça literalmente vai se montando, a alternância de pontos de vista entre os dois serve mais ao joguinho de fechamento das lacunas da primeira metade do que propriamente para enriquecer a dinâmica do casal. E mesmo a “fantasia” trazida pelo enredo é desprovida de quaisquer asperezas, tensões ou criatividade suficientes para balançar os alicerces do filme.

Noites de Alface tampouco possui o desprendimento necessário para simplesmente brincar com seus elementos mais artificiais e o possível impacto das situações que propõe. Pelo contrário: acaba se fechando num aparato de delicadeza repleto de conceitos estimulantes que nunca culminam numa experiência de engajamento verdadeiro. 

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André Guerra
André Guerrahttp://estacaonerd.com
Recifense, jornalista, leonino consciente, cinéfilo doutrinador, agnóstico pagão e em constante desconstrução.
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