A transformação de um cenário fechado em um cosmos alegórico é um dos princípios que mais provocam interpretações óbvias e limitadoras. E, por outro lado, é também um dos mais possibilitadores – tanto que os inúmeros exemplos geralmente são muito distintos entre si. Essa multiplicidade, então, não vem exatamente das relações de significante e significado, mas da sua imprevisibilidade cênica e na maneira como impactam sensorialmente.
Não quer dizer que as parábolas sociais propostas por esse tipo de abordagem sejam de todo descartáveis. O terror/suspense O Animal Cordial, de 2018, é um dos grandes filmes brasileiros dos últimos anos justamente pela articulação de seus simbolismos com o flerte com o gênero. Já O Buscador, dirigido por Bernardo Barreto, sobrevive de modo até bem firme graças não ao seu discurso, mas à desestabilização causada por seu insano plano-sequência.
No enredo, que segue à risca algumas batidas do “vamos conhecer a família da namorada”, tem-se um casal, Isabela (Mariana Molina) e Giovanni (Pierre Santos), que vive há algum tempo numa comunidade sustentável com uma filosofia de vida muito própria. A relação deles vai virar de ponta-cabeça quando ela recebe o convite para um almoço na casa de seu pai Alfonso (Mário Hermeto), um político rico e corrupto cuja casa está cercada por manifestantes.
Esse almoço em família, povoado por arquétipos da elite brasileira (a mãe conservadora, o irmão prepotente, a cunhada emocionalmente instável, a patricinha blogueira), vai da mais absoluta cordialidade até rompantes de agressividade e humilhação. E, no trajeto, algumas figuras de ponta vão ser eventualmente importantes para o roteiro. Enquanto os empregados subservientes funcionam como elemento ilustrativo desse “retrato da família rica disfuncional”, a única criança em cena acaba sendo incorporada de modo mais prático.
Transições até bem abruptas de humor naturalmente vão ocorrer conforme o longa, em tempo real, migra tanto de conflitos mas também de pontos de vista. É claro que a presença de Giovanni, quase sempre pacífica e apenas reativa, é o centro de muitas discussões – religião, sexualidade, valores políticos e assim vai. E dá a impressão que Barreto, a cada curva nesse único cenário (o casarão), quer ou tridimensionalizar alguns dos personagens ou apenas explorar o efeito de constrangimento de seus closes intensos e às vezes demorados.
O plano-sequência de O Buscador, portanto, tem o papel de demonstrar esse movimento ininterrupto das pessoas pela casa – e tenta dar conta de praticamente todos eles num intervalo de pouco mais de uma hora. É também inegável, como de costume nesses casos, o esforço coreográfico para não só acertar o tom de todas as cenas mas, principalmente, conseguir manter a energia e o crescendo que o roteiro exige. E, diga-se, todos os atores levam seus arquétipos bem a sério e mantém o movimento de jogo bem menos arbitrário do que poderia.
Todo esse bate-bola da câmera com o elenco não esconde que os comentários feitos pelo filme sobre crise política, impunidade e corrupção têm um cheiro forte de vencimento. Não que o Brasil de 2021 já tenha passado por cima desses problemas, muito pelo contrário. Mas a forma de discuti-los ganhou um corpo completamente diferente, especialmente desde 2016 e mais ainda depois de 2018.
Mesmo o modo como os manifestantes são colocados (particularmente na cena de “fuga”) soaria condescendente caso levássemos a sério essa contextualização sócio-política de O Buscador. Mais uma vez fica evidente a preocupação em estímulos e movimentos que tirem sempre personagens e público da calmaria e formalismo do prólogo. Esse aspecto de imersão é mais universal e atemporal do que jargões datados como “no Brasil ou você joga o jogo ou sai dele”. A turbulência dentro da casa ou na rua, afinal, não são tão diferentes assim – e parecem cada vez mais se misturar.