ter, 2 dezembro 2025

Crítica | O Filho de Mil Homens

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Não é preciso ser um grande iniciado na literatura de Walter Hugo Mãe para utilizarmos alguns adjetivos como “poético”, “profundo”, “humano” e “emocionante” quando nos referimos às suas narrativas. E, como toda obra que pode ser adjetivada dessa forma, suas adaptações tentam não apenas imprimir, como também provocar o mesmo no espectador. O filho de mil homens (2025), de Daniel Rezende, baseado no livro homônimo, é claramente devoto à escrita e aos personagens desenhados por Mãe.

Crisóstomo (Rodrigo Santoro) é um pescador solitário que sonha em ter um filho. Sua vida muda quando encontra Camilo (Miguel Martines), um menino órfão que decide acolher. Em uma tentativa de fugir de sua própria dor, Isaura (Rebeca Jamir) cruza o caminho dos dois e, em seguida, Antonino (Johnny Massaro), um jovem incompreendido, também se conecta com eles. Nessa miríade de personagens, ligados pela trama, mas distintos em origem e experiência, Rezende se empenha em transformar cada um no cosmos que, conforme poeticamente define Santoro no ato final, é o elo de tudo e de todos.

Essa sensibilidade na construção das personagens, que funcionam como pequenos representantes de faces da sociedade, é apresentada através, claro, de como elas lidam com o mundo, mas também dentro de uma construção visual que passa tanto pela escolha da razão de aspecto — à medida que esses personagens surgem e, por consequência, se ligam a Crisóstomo e Camilo, a janela se abre mais — quanto pela direção de arte, que transforma cada ambiente em algo particular, tanto na ambientação quanto nos tons utilizados. Em outras palavras, trata-se de um longa-metragem extremamente apurado em termos visuais, como sempre é dentro da filmografia de Rezende. Desde Bingo até os filmes da Turma da Mônica, é perceptível o cuidado do diretor na maneira como constrói o mundo em que a história se passa, seja em roteiros originais ou em adaptações para o cinema.

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Há muito que a crítica de cinema ainda se debate com questões relacionadas a adaptações, desde aqueles que defendem ferrenhamente a fidelidade à obra até aqueles que acreditam que, por serem mídias diferentes, exigem abordagens diferentes. A questão aqui posta não busca dar conta dessa discussão datada e, pessoalmente, resolvida; o ponto de reflexão é como a atmosfera da obra de Mãe se conecta à de Rezende. Ora, estamos falando justamente das adjetivações. Poder-se-ia aplicar “poético”, “profundo”, “humano” e “emocionante” ao filme protagonizado por Santoro? A resposta, por sua vez, é mais complexa que um simples “sim” ou “não”.

Isto posto, toda adjetivação precisa de sua argumentação. Não farei aqui, entretanto, uma lista com pontos internos ao filme que justificam cada uma dessas palavras, mas sim uma linha explicativa do porquê de uma resposta não assertiva. O filho de mil homens, incontestavelmente superior, guarda reverberações com outro filme contemporâneo de lançamento: Sonhos de Trem (ou Train Dreams). Se, no projeto estadunidense, não se encontrava nada além de emulações gratuitas de um cinema “malickiano”, Rezende traça, visual e narrativamente, uma história de fato humana. Existe carinho pelos personagens, por como suas tramas se conectam, por como o cosmos ilumina e explode na noite (a cena final é belíssima). Ou seja, é um cinema que guarda atenção ao modo como se representa e como se narra.

Ora, então você, leitor, me pergunta: o que é que ambos os filmes trazem de semelhante? Respondo: o impulso em ser emocionante. Toda a história, por si só, é uma sequência de pequenas joias que formam um colar cuja solidificação se dá através de um abraço. Mas existe, seja nos momentos em que os personagens falsamente encaram a câmera, seja quando as lentes se colocam tão próximas, a necessidade de conduzir ao choro. Não é que o sentimento não exista, mas ele não matura; ele precisa se converter em um choro copioso; emocionado, claro, mas não tão sentimental.

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Essa característica faz do filme inferior? Não. Ele é, indubitavelmente, “poético”, “profundo”, “humano” e “emocionante”. Algumas vezes de forma forçosa, outras de forma natural. No final, fica a impressão de um mundo mais interligado, como talvez seja, afinal, entre a literatura e o cinema.

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Destaque

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