Baseado em fatos documentados e adaptado para o cinema a partir do livro autobiográfico O Diário de Guantánamo, O Mauritano conta a história de Mohamedou Slahi (Tahar Rahim), detido sem acusação formal por mais de uma década na prisão de Guantánamo, jurisdição estadunidense em território cubano, sob alegada suspeita de envolvimento nos atentados de 11 de setembro de 2001.
Dirigido por Kevin Macdonald (O Último Rei da Escócia), o filme acompanha os rumos que levam ao julgamento do protagonista ao passo que busca um resgate de suas origens e da maneira como ele chegou àquela situação. Objetiva-se um delicado equilíbrio entre esse lado de reconstituição íntima dos fatos e o desenrolar do processo em si, núcleo em que ganham relevo as figuras de Nancy (Jodie Foster) e Teri (Shailene Woodley), responsáveis pela defesa, e Stuart (Benedict Cumberbatch), a priori incumbido da acusação. É dada ao diretor a difícil missão de conciliar essas duas facetas da história sem que a obra soe fragmentada, e o resultado é, dentro do possível, dotado de uma unidade que atravessa o longa e o conduz até o fim.
Isso porque, mesmo estruturado nesse vai e vem de memórias e tempo presente, com a convivência entre o espaço pessoal do protagonista e a lógica de thriller que marca o percurso do julgamento, O Mauritano reflete em maior ou menor grau, em todos os seus momentos e nas múltiplas perspectivas que apresenta sobre o caso, uma ideia de esmagamento do indivíduo ante o peso e as ramificações quase kafkianas de uma institucionalidade voltada a expiar de maneira simplisticamente responsiva a culpa do imperialismo estadunidense e o ódio direcionado aos fantasmas alimentados por ele mesmo. Embora o filme não pretenda realizar um estudo amplo dessas mazelas, o peso delas se faz subjacente à narrativa. Reveladora nesse sentido é a cena em que Slahi, interrogado, admite ter tido envolvimento com a Al-Qaeda em sua juventude para lutar contra os soviéticos ao lado do exército dos EUA, como que num apelo para que não o vejam como inimigo, e é ignorado pelos interrogadores, que precisam seguir com a automática e irrefletida lógica de punitivismo imediato.
Dentro dessa lógica de diminuição do indivíduo perante seu entorno se encontra não apenas o protagonista, mas todos os envolvidos na narrativa. Assim, embora caiba a Slahi quase todo o peso emocional da obra em seus contornos mais trágicos, é estabelecido um elo entre sua jornada e as dos coadjuvantes mais destacados. Todos eles estão, cada um a seu modo, mergulhados com um senso de inescapabilidade em um sistema voltado não a alguma ideia de justiça, mas à punição como, sem ver a quem, a única resposta possível para a expiação imediata. Esse elo, que constitui a unidade de O Mauritano, é ressaltado tanto pela montagem, que em várias passagens paraleliza as ações de Stuart e Nancy conforme eles vão ingloriamente tentando vencer a burocracia para tomar conhecimento dos contornos do caso e das condições a que Slahi foi submetido, como pelos enquadramentos heterodoxos de Macdonald nas sequências mais cruciais, sempre buscando promover algum grau de enervamento, desorientação e apequenamento dos personagens frente aos ambientes em que se situam, abordagem que alcança seu ápice de efeito expressivo na sequência que retrata, em flashback, as práticas de tortura impostas ao protagonista.
Grande parte do mérito de O Mauritano, aliás, vem da compreensão de que, embora todos os seus personagens habitem esse mosaico opressivo, se vejam impotentes diante dele e operem para tentar mudá-lo, a história tem um protagonista específico, e, recaindo sobre ele os desdobramentos mais cruéis de todo esse quadro complexo, é sua experiência que deve ser privilegiada. Ilustrativa dessa consciência e particularmente representativa da perversão contida em toda a lógica representada no filme é a cena em que Nancy e Stuart conversam em um bar contíguo à loja de souvenirs – sim, souvenirs – da prisão de Guantánamo, pondo em choque suas diferentes visões em abstrato sobre a natureza e o destino do local, enquanto, lá dentro, Slahi e vários outros seguem sendo submetidos a toda sorte de condições desumanizantes.
É verdade que, em alguma medida, ainda que lateralmente, perpassa o filme a ideia de heroísmo individual dos “obstinados americanos” que tentam corrigir as “falhas” do sistema de justiça de seu país, o que encurta o escopo crítico da obra ao relegar as mazelas retratadas a um problemático status tópico e acidental de “mal funcionamento das instituições”.
Apesar disso, é tocante que ao fim da projeção, conforme rolam os créditos, superada a imersão e os apelos dramáticos mais imediatos do thriller a que se assistiu pelas últimas pouco mais de duas horas, faça-se a opção de exibir imagens documentais de Slahi retornando a sua casa e sendo recebido por família e amigos. É como um lembrete de que realmente importante no fim das contas, para além do gozo e do envolvimento proporcionados pela sessão, é o fato de que O Mauritano trata de um recorte na história de uma pessoa cuja vida segue para além do cinema.