dom, 22 dezembro 2024

Crítica | O Menino e a Garça

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      O legado de Hayao Miyazaki e Studio Ghibli para a história da animação já é enorme. Miyazaki, hoje com seus 83 anos de idade, conseguiu construir uma carreira ilustre produzindo filmes como A Viagem de Chihiro (2001), que chegou a lhe render um Oscar de melhor animação, mas seria talvez muito limitante reduzir seus filmes a meros prêmios. O diretor, com sua personalidade excêntrica e apreço por detalhes conseguiu transformar suas ideias, angústias e desejos em obras cheias de vida que transitam entre o belo e o pitoresco, influenciando toda uma geração de artistas em diversas frentes que reconhecem na figura de Miyazaki um exemplo de expressão e criatividade. É impressionante ainda que 10 anos após anunciar sua aposentadoria, o diretor tenha cedido a sua pulsão por criar e retornado agora com um novo filme: O Menino e a Garça.

      A história se passa durante a Segunda Guerra Mundial e acompanha Mahito, um garoto traumatizado pela perda de sua mãe que precisa se adaptar a um novo estilo de vida agora que seu pai casou com outra. O garoto passa a morar na mansão de sua madrasta demonstrando um claro desconforto com a situação e se isso já não fosse o bastante, a presença de uma estranha garça-real começa a desestabilizar cada vez mais sua mente. Mahito então entrará em uma jornada para descobrir os segredos por trás do estranho animal e talvez alguns sobre si mesmo. 

      Sabendo um pouco sobre a vida de Miyazaki, já é possível criar alguns paralelos entre ele e o personagem Mahito. O trabalho de seu pai com aviões durante a Segunda Guerra, as perdas e traumas causados pelo conflito unem autor e obra. Obviamente Mahito não chega a ser uma transposição direta do diretor para dentro do filme, mas fica claro que as experiências de vida de Miyazaki transbordam para a tela assim como em tantos outros de seus projetos, esse teor autobiográfico é tudo menos inédito. Os elementos que evidenciam esse transbordar não são apenas as situações, mas também a forma como a animação se configura, e isso já é de praxe para o estúdio. Passagens mundanas tem um valor atmosférico potente, seja o ranger de uma roda, o movimento de uma vassoura ou o abrir de uma porta, o filme faz com que a animação tenha vida por dar atenção a diferentes sensações e entender como trazê-las para o primeiro plano. Isso não se dá apenas por uma tentativa de realismo mas muitas vezes pela extrapolação também e aqui existem exemplos marcantes disso desde o primeiro minuto. 

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      Chega a ser um pouco cômico que um dos pontos de reflexão nessa história seja o embate entre o desejo por controle e um reconhecimento da beleza do mundo como é, dado o histórico por trás dos envolvidos no filme, mas o contraste criado entre os personagens acaba de alguma forma sintetizando também o que se pode imaginar do processo por trás de um filme desse tipo. Para desenvolver uma animação majoritariamente desenhada a mão que tem todo um apreço pelo detalhe é de se esperar que o processo de planejamento e de produção seja algo minucioso e mesmo que na prática seja um exercício de imaginação, é uma forma de controlar o poder da imagem fantástica dentro de um produto idealizado: o filme. No entanto, nada tira disso a liberdade do processo de tentar enxergar coisas diferentes, de imaginar e de se inspirar com imagens reais ou produzidas. 

      Mesmo sem uma tentativa de ler O Menino e a Garça a partir de suas referências, já fica claro que o simbolismo é um elemento importante para o filme desenvolver sua trama. Nesse sentido é a partir da mistura dessas referências dos mais diversos lugares que novas ideias e conexões se formam em tela para gerar conceitos novos e estimulantes. São diversos elementos visuais e conceituais não verbalizados, mas ainda assim o filme consegue se sustentar na simplicidade dos seus diálogos. São diálogos simples no sentido de acessibilidade mas ainda assim carregados de significado, algo que Miyazaki parece nunca abrir mão. 

      Num mar de produções apagadas, padronizadas e insossas a existência de um filme desses é inspiradora. Mesmo sem revolucionar seu próprio padrão, Miyazaki e Studio Ghibli colocam novamente suas ideias em destaque com uma produção que demonstra plena consciência de seu potencial de imaginar. E se um frescor já pode ser sentido pela forma que esse filme se apresenta visualmente, a reflexão de Miyazaki sobre a vida também toca.

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Fabrizio Ferro
Fabrizio Ferrohttps://estacaonerd.com/
Artista Visual de São Paulo-SP
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