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    Crítica | O Mistério de Candyman

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    Quando Bernard Rose escreveu e dirigiu O Mistério de Candyman, lançado em 1992, o slasher, jábem consolidado enquanto subgênero do horror e amplamente integrado em suas convenções ao imaginário do público, gozava de um grau de maturação suficiente a lhe permitir olhar-se no espelho e ampliar suas possibilidades. Não à toa, a década de 1990 marcou, a um só tempo, o auge criativo do nicho enquanto tradição autorreferenciada – a ver o sucesso de Pânico (Wes Craven, 1996) como exercício metalinguístico – e a sua saturação e consequente declínio.

    É nesse contexto que se encaixa o filme de Rose, que traz em si a sensação de pertencimento ocasionada por um exercício de subgênero estabelecido, mas não abre mão de se permitir encampar outras tendências do horror. Em O Mistério de Candyman, Helen, cética pesquisadora de lendas urbanas, toma conhecimento da história do Candyman, homem negro que no Séc. XIX foi assassinado e teve as mãos cortadas por se envolver com uma mulher branca e seria invocado pela repetição do seu nome em frente ao espelho por cinco vezes, surgindo como assassino com um gancho no lugar da mão amputada. Por óbvio, a protagonista decide ir a fundo na história e investigar sua procedência e seu impacto atual no credo das pessoas, gerando consequências que serão o motor da narrativa.

    Ainda que parta de uma roupagem de nicho, como dito, muito facilmente reconhecível em sua iconografia – o antagonista de visual grotescamente marcante, o artefato cortante, a final girl a ser possuída, as vítimas secundárias que ficarão pelo caminho, entre outros elementos –, o diretor busca fazer de O Mistério de Candyman mais do que um produto confinado aos códigos da tradição a que se filia a uma primeira vista.

    Desde o início da projeção, é estabelecida a atmosfera que atravessará toda a obra. A primeira cena, filmada num zenital extremo – plano vertical de cima a baixo – que percorre a cidade na sua dinâmica contemporânea e concreta – carros que vagam, prédios e viadutos que se amontoam –, é marcado ao fundo por uma trilha sonora carregada de um senso de mistério, de que algo se esconde por trás daquela realidade à primeira vista plana e simples, tudo enquanto os créditos iniciais ainda rolam sobre a tela. Logo em seguida, tem-se uma sequência que encena um relato oral de aparição do Candyman num cenário tipicamente suburbano, bucólico, quase um idílio de classe média alta desses que compõem a tradição imagética do slasher. Assim, em apenas duas sequências, Rose expõe as cartas da abordagem formal que marcará seu filme: uma narrativa do presente, urbana e contemporânea, mas não mergulhada num realismo limitador; ao contrário, aberta aos ecos e evocações das histórias que atravessam o imaginário daqueles espaços.

    E O Mistério de Candyman talvez seja, antes de qualquer coisa, um filme justamente sobre espaços e as dinâmicas de poder exercidas neles. Existe todo um jogo de classe, raça e gênero implícito ao texto e mobilizado por Rose através da mise en scene. A contraposição entre os locais onde reside o poder e os que estão sujeitados a ele é sempre bem delimitada, seja numa mesa de restaurante ocupada por homens e mulheres, seja na geografia gentrificada da cidade. Partindo desse tensionamento, a obra põe em disputa a todo instante a quem cabe a prerrogativa de invadir e profanar o espaço do outro e quais as consequências disso. E é justamente quando essas fronteiras se borram, quando as posições se invertem, que o terror aflora.

    A pesquisadora branca que se sente na posição de olhar, documentar e relatar o outro e para isso adentra sem maiores considerações regiões – tanto concretas como imateriais – que não lhe pertencem; o antagonista que invade sexualmente o espaço físico da protagonista e a vê como propriedade; o personagem secundário que abusa da sua posição de poder no relacionamento e no espaço acadêmico para fazer prevalecer seus desejos em prejuízo do respeito ao outro. Todos esses atos de agressão recebem respostas extremas e vão compondo, junto a elas, o mosaico cíclico de violência que integra o imaginário urbano, se tornará folclore e seguirá adiante.

    “Essas histórias são modernas, lendas urbanas. São reflexos inconscientes dos medos da sociedade urbana.”, diz em certo momento, ainda no início da projeção, um dos personagens ao proferir um discurso acadêmico sobre o tema, como que resumindo em abstrato o mote da narrativa. O que Rose faz, então, é transpor a reflexão do abstrato ao concreto, materializando através da encenação essas angústias que perpassam a história daquela paisagem urbana. Uma história que parece se olhar no espelho não para romper com suas chagas, mas para se retroalimentar continuamente.

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