seg, 25 novembro 2024

Crítica | O Mundo de Gloria

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Um bebê nasce. A cena é filmada com forte ar de sacralidade. Câmera lenta, música apoteótica. Uma nova vida se inicia, repleta de grandeza e possibilidades. Um corte brusco. A família da recém-nascida Gloria chega para visitá-la no hospital. A câmera passeia pelo ambiente capturando desconfortos e ranhuras que já se anunciam. Não há mais trilha sonora. É assim, reveladora do embate entre encanto e crueza, a sequência que abre o novo filme do francês Robert Guédiguian.

Ironicamente, O Mundo de Gloria não conta a história da personagem-título. O nascimento dela é apenas o gatilho para que Guédiguian se debruce sobre a natureza do mundo que a recebe. Por suas pouco mais de 1h40min, o filme divide sua atenção sobre sete membros da família de Gloria: seus pais, um casal de tios, sua avó, seu avô de criação e seu avô sanguíneo, recém-saído da prisão.

Mais do que qualquer coisa, é preciso entender que O Mundo de Gloria é um filme do capitalismo tardio. O mosaico de relações familiares e sociais concebido pelo diretor traz em si as marcas de um tempo de precarização onipresente. Tudo está sempre em jogo, à beira do precipício, num ritmo imperativo de movimentação e necessidade de desempenho constante. O motorista de aplicativo que trabalha uma carga horária gigantesca sem nenhuma seguridade, mas romantiza a condição de “patrão de si mesmo”, o pequeno empreendedor que goza de algum sucesso e embarca numa vertigem quase sexual como modo de vida, a empregada de loja com contrato temporário que sabe que em meses será substituída, entre outros, são algumas das figuras representativas dessa lógica que compõem a paisagem da obra.

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Tudo isso é filmado quase sempre com um distanciamento que trata os sujeitos como objeto de estudo. Não há aqui a intenção de retratar esse mundo precarizado e volúvel sob uma ótica aproximativa que vibra e segue as pulsões de aventura dos personagens, como ocorre, por exemplo, no ótimo Joias Brutas (Josh Safdie e Ben Safdie, 2019), obra que também captura o espírito do seu tempo, mas sob uma abordagem radicalmente distinta. O filme de Guédiguian se mostra mais próximo de uma tradição realista do cinema europeu de “preocupação social”, tradição essa de que talvez o maior expoente seja o britânico Ken Loach (Kes, 1969; Você Não Estava Aqui, 2019). A utilização da linguagem cinematográfica para mediar a narrativa é menos autoevidente, mais enxuta, com um tratamento mais cru.

É, portanto, da exposição das situações em si que o diretor extrai o sentido de O Mundo de Gloria. Por meio da representação continuada de um estado de coisas corrompido por dentro, o filme esgarça as relações dos personagens e deixa aflorar as ranhuras e assimetrias nelas presentes. Nesse cenário, há pouca ou nenhuma harmonia, seja interna ou externa, mesmo para os “bem-sucedidos”. Quase todas as interações são eivadas de desconforto implícito, forte senso de corrosão e uma urgência, um “excesso de presente” que beira o desespero. É uma tendência que, de tão acentuada, em alguns momentos chega a quase eliminar qualquer grau de empatia do espectador para com os personagens, colocando o filme num patamar mais de observação curiosa e menos de envolvimento dramático propriamente dito.

Daí a importância chave de um personagem específico como alívio para esse ciclo tortuoso. O avô sanguíneo de Gloria, figura que passou anos na cadeia e volta ao convívio da família, funciona, aqui, como uma espécie de consciência que paira sobre os rumos dos personagens, e é apenas quando se aproxima dele que a obra tem algum respiro, põe a cabeça um pouco para fora de suas dinâmicas corroídas e adquire algum senso de beleza e possibilidade de futuro. É somente quando busca enxergar de longe um quadro de aparência desoladora que o filme consegue vislumbrar encanto no que está ao redor. Não à toa, talvez o gesto final do filme seja tão valioso quanto o inicial, já que ambos, de um modo ou de outro, representam nascimento e possibilidades.

E talvez O Mundo de Gloria seja, no fim das contas, isso. Um estudo duro e franco sobre relações familiares e sociais, mas também um filme que não perde de vista a possibilidade do afeto e a necessidade de se recuperar a perspectiva das coisas e, com ela, o significado dos laços construídos.

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Felipe Lima
Felipe Limahttp://estacaonerd.com
Formado em Direito. Palpiteiro em Cinema.
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