qua, 30 outubro 2024

Crítica | Paraíso

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É intrigante contemplar um filme que introduz um discurso permeado por matizes anti-capitalistas ao mesmo tempo que ele é disseminado através de uma das empresas mais emblematicamente capitalistas no setor cinematográfico. Essa mesma empresa, que em meio à greve dos roteiristas, também está direcionando investimentos para iniciativas de inteligência artificial. Portanto, é o fenômeno do capitalismo, crescentemente e impositivo, que se torna evidente. O paradoxo em jogo é inegável: a indústria mobiliza todos os recursos ao seu alcance, incorporando discursos e concepções, com o propósito de maximizar seus ganhos. A engrenagem capitalista revela uma preferência por produzir filmes com discursos desse teor, aparentemente como uma maneira de apelar a diversas camadas populacionais. Nesse contexto, a Netflix mais uma vez se esforça para cativar o espectador com seu discurso social de cunho mais suave, característico do que poderíamos chamar de “cinema para a elite”.

Entretanto, é válido ponderar que essa conjuntura não necessariamente constitui um problema de proporções tão colossais. Tendo em vista que o cinema já surgiu num contexto industrial, capitalista e elitista, é apenas o sistema em sua natureza, operando conforme suas “necessidades” e prerrogativas. Contudo, vale ressaltar que até mesmo neste contexto, o novo filme Netflix “Paraíso”, em comparação ao recente trabalho de Greta Gerwig, demonstra não ter atingido a mesma maestria no que concerne à sua execução.

Desse modo, o filme “Paraíso” desdobra uma narrativa num futuro não necessariamente distante, no qual um método de transferência temporal entre indivíduos alterou irrevogavelmente o curso do mundo, alçando a startup de biotecnologia Aeon ao patamar de uma corporação bilionária. Quando o casal Max e Elena se vêem confrontados com a urgência de obter recursos para solucionar uma dívida inesperada, Elena (Marlene Tanczik) percebe que será obrigada a renunciar quatro décadas de sua própria existência. O impedimento de um futuro com seu marido impulsiona a decisão conjunta da dupla em tomar medidas drásticas. Max (Kostja Ullmann), colaborador da Aeon, empreende todos os esforços possíveis na tentativa de reaver o tempo “negociado” por Elena.

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“Paraíso” se desenvolve em torno de uma ideia que identificamos como consciência de classe, tendo como cenário protagonistas da média burguesia (ou que acreditam ser). O trabalhador alienado (Max), enquanto mantiver a sensação de pertencimento à burguesia, não conseguirá reconhecer a extensão de sua exploração, tampouco compreenderá sua posição de peão — e não de rei —, ao menos até que experiencie injustiças comparáveis àquelas que ele mesmo perpetuava. A percepção das transgressões cometidas pela Aeon só ocorre em Max quando a arbitrariedade afeta diretamente sua família; nesse sentido, a virada da narrativa (plot) concebida por Boris age como um gatilho que repentinamente altera a mentalidade do protagonista. Observa-se aqui o capitalismo implacável perturbando seus peões, pelo menos é assim que o diretor acredita.

Além disso, “Paraíso” se revela como uma obra que não proporciona uma jornada significativa, não consegue gerar entusiasmo e muito menos envolver o telespectador. O filme se esforça para adotar uma premissa de suspense amoral/político, com o intuito de provocar o choque na audiência diante da trama e dos desdobramentos apresentados, o que de certa forma acontece nos primeiros 10/15 minutos. No entanto, a maneira como Boris decupa a imagem, não consegue efetivamente conectar o espectador, resultando na ausência de um elo significativo.

“Paraíso” compartilha dos mesmos sintomas que frequentemente se manifestam no catálogo da Netflix, ao se fragmentar numa estrutura episódica, como se cada reviravolta constituísse um novo capítulo semanal. O primeiro ato, por exemplo, apresenta uma mise-en-scène que busca estabelecer uma dualidade irônica: por um lado, a alegria do protagonista acompanhada por uma trilha sonora serena e esperançosa; por outro, a revolta do espectador diante da injustiça capitalista em uma fotografia fria e chapada. Entretanto, no desenrolar da trama, Boris implementa alterações em seu filme, sem conseguir efetivamente alinhar o enredo com o que é apresentado em tela. Esse processo acaba gerando uma confusão narrativa que sugere uma crise de identidade na obra.

A partir deste ponto, a mise-en-scène adquire uma tonalidade mais sombria, sugerindo uma abordagem mais intensa diante da trama em suspensão. No entanto, em vez de efetivamente abraçar essa perspectiva, e se assumir como um sci-fi de suspense ala “black mirror”, o filme se inclina em direção ao de cinema de ação, o que por sua vez se traduz em uma fotografia estéril e desprovida de qualquer proposição excitante. Entretanto, o aspecto mais peculiar reside na forma como o filme adota uma abundância de “vícios” na montagem, buscando estabelecer um dinamismo estilizado através dos planos que em muitos momentos são encurtados, interrompendo diálogos para introduzir uma “resposta” visual. Isso acaba resultando em uma encenação cada vez mais confusa e menos significativa.

Esse cinema algoritmizado que se apresenta nos tops semanais dos streamings, com seus “dinamismos estimulantes” (que, na realidade, de estímulo não tem nada), presume que essa tendência conferirá uma abordagem autoral na forma de contar história, sendo que na realidade, eles aparentam ser cada vez mais genéricos. Dessa forma, a Netflix apenas disponibiliza mais um filme que tenta abarcar uma variedade de elementos, mas acaba por não conseguir transmitir nenhum deles. Estamos, portanto, diante de uma obra que fracassa em evocar emoção e imersão, resultando em sequências monótonas, desprovidas de ritmo, estrutura e, mais crucialmente, conexão com o público.

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Caique Henry
Caique Henryhttp://estacaonerd.com
Entre viagens pelas galáxias com um mochileiro, aventuras nas vilas da Terra Média e meditações em busca da Força, encontrei minha verdadeira paixão: o cinema. Sou um amante fervoroso da sétima arte, sempre pronto para compartilhar minhas opiniões sobre filmes. Minha devoção? Cinema de gênero, onde me perco e me reencontro a cada nova obra.
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